sexta-feira, 8 de julho de 2011

Senhoras e senhores, o tempo acabou
04.07.2011
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Tiago saiu de casa, cedo, para fazer a última prova. Estava pleiteando uma bolsa de estudos e esta prova era decisiva, a diferença entre cursar um bom colégio, com excelentes professores ou ter que fazer o segundo grau em um curso supletivo qualquer, barato, que era o que os seus pais podiam pagar.
Havia estudado bastante, perdido várias baladas para poder ter uma chance. Mas não se sentia seguro. Convivia com muitas pessoas que falavam errado, cursara seu primeiro grau numa escola pública com as dificuldades das greves, falta de estrutura, falta até de computador. Tinha que pagar pelo uso de computador nas lan houses tentando aperfeiçoar seus conhecimentos, economizando o pouco dinheiro que seus pais podiam lhe dar.
Atravessou a rua, inseguro, pediu informações no prédio e descobriu a sala da prova. Sentou-se, olhou tìmidamente em volta para os outros candidatos. Respirou fundo, pedindo aos céus que não tivesse os famosos “brancos”, quando se esquece toda a matéria devido ao nervosismo.
A prova foi distribuída. Deram o sinal para começarem. Tiago leu os enunciados das questões, tentando se manter calmo e avaliando quais as questões que achava mais fáceis. Começou por estas, para não perder tempo. Conseguiu fechar com sucesso algumas questões e partiu para as mais dífíceis. Fez os cálculos com números bem legíveis porque poderiam contar pontos mesmo que a sua resposta final estivesse errada. Refez os cálculos em três questões antes de se arriscar a dar a resposta definitiva. Porém começou a sentir uma movimentação na sala e achou melhor escrever ràpidamente as respostas para não deixar nada em branco, enquanto a movimentação em seu redor aumentava, até que ele e os outros candidatos ouviram a frase fatal: - Senhoras e senhores, o tempo acabou.
Guardou imediatamente a caneta e seguiu o procedimento para a entrega da prova sem deixar margem a ter sua prova anulada, como aconteceu a um candidato que insistiu em continuar escrevendo depois do tempo permitido.
Já na rua respirou fundo, preocupado, incerto quanto ao resultado da prova mas agora só poderia aguardar. Caminhou até encontrar o MacDonald’s mais próximo onde pretendia lanchar e não pensar em mais nada.
-2-
Eram dez horas da manhã quando Tarcísio olhou para o relógio na sala de espera da empresa. Tinha passado por três entrevistas ao longo do mês e agora teria que fazer uma prova, talvez de conhecimentos gerais, último passo para conseguir este emprego.
Como, no início, eram vinte candidatos, pelo que conseguiu saber da secretária e agora eram quatro candidatos esperando para fazer a tal prova avaliou que o emprego era seu, questão de ultrapassar esta última etapa. Olhou discretamente para os outros dois rapazes e a moça e se sentiu confortável.
Foram levados para a sala, as folhas foram distribuidas. Achou graça, por um instante, já que estava muito acostumado a escrever no computador e não mais à mão. Porém sua letra era boa, sem problemas. Iniciado o tempo, virou a folha da questão que lhe pedia uma redação sobre os produtos vendidos pela empresa, a posição da mesma no mercado e sugestões para a captação de um maior número de clientes do público alvo. Moleza.
Dada a partida redigiu, sem dificuldade e com coerência porque tinha previsto um tema deste gênero e já tinha esboçado mentalmente algumas idéias no dia anterior. Terminou o texto mas preferiu fazer a revisão com toda a calma até que, por fim, uma voz categórica determinou: - Senhoras e senhores, o tempo acabou.
Entregou a prova, despediu-se das pessoas que estavam presentes e saiu, confiante, retirando o celular do bolso para a primeira chamada do dia enquanto localizava o elevador.

-3-
Acordou decidida a se separar.
Teresa estava casada há cinco anos. Seu marido tinha sido seu professor, era dez anos mais velho que ela e soube impressioná-la, seduzi-la.
Ela reconhecia seu deslumbramento inicial mas o curto namoro que logo virou casamento e os anos de convívio foram, para ela, como um balão que vai murchando. Seu temperamento alegre, de pessoa extrovertida tinha sido gradualmente podado por seu marido que aos poucos evitou seus amigos, seus parentes, suas festas (como ela gostava de dançar!) , suas alegrias, restringindo-a a ver filmes alugados na TV, única diversão do interesse do marido. Resolveu redigir o e-mail.
Começou o e-mail por Meu bem mas achou que isso era para pessoas casadas há mais de vinte anos. Deletou e escreveu:
Querido,
Sinto muito mas nosso casamento acabou. Não é novidade pra você, estamos vendo os sinais a cada dia e hoje é o dia da separação.
Sugiro que vá para a casa da sua mãe até se acomodar em outro lugar ou faça como quiser.
Deixei suas malas no hall de entrada. Venha buscá-las mas, por favor, não entre no apartamento. Vamos deixar o tempo assentar as coisas.
Não se preocupe com o divórcio, eu mesma faço. Fico com o nosso apartamento que ganhei de meu pai e depois você vem buscar suas coisas. Leve seu carro, é claro e eu fico com o meu.
Te ligo em três dias para dar tempo das fichas cairem, ok?
Bjs
Teresa.
Enviou.
Foi tomar seu café e seu banho.
Depois de fazer as malas do agora ex-marido, colocou-as no hall de entrada e voltou para o computador. Acompanhou o andamento de alguns processos pela internet. Releu ràpidamente as cópias dos três processos relativos às três audiências do dia, nada muito complicado: 2 acordos fáceis e 1 adiamento, com certeza.
Almoçou e se dirigiu para o Forum, para as audiências.
Depois disso passou no escritório para atender a uma única cliente.
No escritório só atendia aos clientes, tomando conhecimento inicial do problema, resolvendo se aceitava ou não a causa e tomando as primeiras anotações. O trabalho de fundo ela fazia em casa, à noite, quando lia as peças com cuidado, atenta a cada palavra de cada documento, frente e verso, lendo todos os carimbos e todas as assinaturas. Avaliava até mesmo a gramatura do papel. Uma palavra mal entendida ou negligenciada podia significar a perda ou ganho de uma causa além de desvirtuar e desviar todo o necessário trabalho de pesquisa das leis e jurisprudência em que fundamentava a defesa dos clientes.
Recebeu a cliente aflita que disse que sua empregada doméstica, com quem tinha se desentendido, havia lhe trazido uma enorme cobrança do Sindicato, muito injusta a seu ver, porque só devia à empregada a última semana trabalhada. A mulher disse, muito nervosa, que tinha pavor de se meter com a justiça e que não havia mandado a empregada embora, apenas discutiram e a empregada foi embora no final do dia como sempre.
Teresa pediu o endereço da empregada doméstica. Acalmou a senhora dizendo que iria enviar, no dia seguinte, um telegrama convocando a empregada ao trabalho. Com isto estaria descaracterizando a alegada demissão da empregada, que certamente não iria aparecer para trabalhar. A cobrança do Sindicato perderia seu propósito. Tranquilizou a cliente dizendo que o caso se resolveria fàcilmente no cartório onde o advogado da empregada iria lhe pedir quantia maior do que a oferecida mas Teresa recusaria encerrando a peleja pelo preço justo devido por sua cliente. Esta perguntou, então, o valor dos honorários de Teresa e ela respondeu que cobraria o preço da consulta, para pagar o envio do telegrama e seu deslocamento e tempo no cartório, para encerramento do caso, na data marcada.
Assim que a cliente saiu, Teresa pediu à estagiária que fechasse o escritório e saiu às pressas. Queria estar em casa quando seu ex-marido fôsse buscar as malas.
Já sentada na sala decidiu justificar as razões do divórcio como : incompatibilidade de gênios. Embora, no divórcio consensual não haja necessidade de apresentar motivação, para ela era um lance de humor que se permitia já que a ironia era verdadeira e o magistrado teria que aceitar.
Ouviu o elevador parar, seu marido deslocar as malas. Sentiu que o marido parou, como previra, para ler a etiqueta que Teresa pregara na mala grande com os dizeres que tanto ouvira deste professor: Senhoras e senhores, o tempo acabou.
Sentiu alivio. Sua ira contida, pelos cinco anos de vida que o marido lhe roubara desapareceu naquele instante. Estava livre.

-4-
Tarcila estava em pé ao lado da cama. Seu marido estava morrendo, na sua frente, deitado, imóvel.
Sentia a força da dor. Seu companheiro de uma longa vida estava lhe deixando só. Mas será mesmo que teriam compartilhado a vida, entre tantas correrias?
Tarcila tinha corrido durante anos, para a escola onde dava aulas e para a casa, cuidando dos filhos. A famosa dupla jornada. Seu marido corria para o trabalho, ajudava-a lavando a louça do jantar e com as crianças.
Ele não teve tempo de se aposentar, nem ela. As décadas passaram rápido, os filhos cresceram rápido.
Mas eles se olhavam e sorriam quando as crianças brincavam; eles se olhavam e se entendiam quando a festa estava chata e era hora de debandar. Eles até se olharam uma vez, dentro de uma loja, quando estavam afastados. Ela olhou para um homem gordo e voltou a olhar para o marido, que olhou para o homem gordo e voltou a olhar para ela, compreendendo que ela estava dizendo: Você está se achando gordo mas este aí está muito pior. E o olhar dele foi a resposta: De fato.
Tarcila queria olhar mais uma vez dentro dos olhos de seu marido.
Mas ele parou de respirar quando Tarcila ouviu sua própria voz repetindo a frase batida que ela dizia a seus alunos no final de cada prova : Senhoras e senhores, o tempo acabou.
PASSAPORTE VENCIDO
27 de junho, 2011

Georg era o nome de meu pai. Ele me nomeou Jacques, o que veio a salvar minha vida quando fugimos da Alemanha, em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 a 1945. As mulheres da família tinham os nomes típicos judeus, sendo Sara, minha mãe, Deborah, minha esposa e assim por diante.
Eu já estava estabalecido como moldureiro em minha cidade, Baden Baden quando começamos a sentir o cheiro de perigo no ar.
Diz a história que o Tratado de Versalhes foi a causa mais importante, indireta, para o início da guerra porque sujeitou o povo alemão a grande humilhação, culpando a Alemanha e seus aliados pela primeira guerra mundial e impondo aos alemães pagamentos de somas vultuosas aos Aliados, com graves consequências na economia do país, provocando alta inflação. Isto gerou o forte sentimento nacionalista que veio a ser usado por Adolf Hitler e o Partido Nazista, com sua ideologia racista que apregoava a superioridade da raça ariana identificando-a com o povo alemão. Esta teoria foi trazida por uma obra de 1899 do inglês Chamberlain, que foi chamado de O antropólogo do Kaiser. O preconceito e hostilidade contra os judeus gerou a perseguição da qual alguns de nós conseguimos escapar.
Quando atiraram a primeira pedra em nossa loja resolvi vendê-la, sem pestanejar, e partir para Lisboa onde calculei que a guerra não chegaria.
Após vender a loja, a casa, móveis e algumas jóias escapamos de Baden Baden, de carro, à noite, com poucas malas. Eu e minha mulher, Deborah estávamos com 30 anos, nossa filha Anna com 3 anos e meu pai Georg com 70 anos. Minha mãe Sara havia falecido.
Deixamos nossa terra para trás e enquanto eu dirigia pensei em quantos grandes homens a Alemanha havia produzido. Filósofos como Kant, Hegel, Schelling, Schopenhauer, Nietzche. Escritores como Goethe e Schiller, os Irmãos Grimm, Thomas Mann, Herman Hesse. Compositores como Handel, Bach, Beethoven, Schumann, Mendelssohn(Também judeu), Brahms. Eu havia passado toda a minha infância, adolescência e juventude em Baden Baden, no vale do rio Oos, chegando à planície do Reno. Não esqueceria o ar das montanhas da Floresta Negra e das fontes termais. Não esqueceria o gosto da salsicha, da cerveja e do bolo Floresta Negra que veio a ser divulgado no mundo inteiro.
Teríamos que passar pela França, que foi ocupada em 14 de julho de 1940 e precisamos da ajuda da resistência francesa na figura da corajosa Margot. Ela nos ajudou na travessia desde a cidade de Strasbourg, passando por Lyon e Toulouse até Andorra. Após atravessarmos os Pirineus pudemos seguir, por conta própria até Madrid e por fim, até Lisboa. Porém tivemos que deixar para trás um passageiro: meu pai Georg.
Em uma das barragens fomos parados pelos nazistas que nos mandaram descer do carro naquela noite gelada e nos pediram os documentos. Meu pai estava com o passaporte vencido. Ele não me deixou providenciar sua documentação, disse que ele mesmo o faria. Penso hoje que, aos 70 anos, meu pai não queria deixar para trás sua terra, sua esposa Sara, sua história de vida. Ele se considerava alemão mesmo que os alemães lhe dissessem agora o contrário. Não estava preocupado com as consequências.
Vi seus olhos fixados em mim, apesar da pouca claridade das lanternas e seus olhos diziam para que eu seguisse em frente. Foi levado por dois homens que o puseram num caminhão e nos deixaram partir.
Seguimos, tensos, a dura travessia comendo cascas de batatas e pão duro, evitando qualquer sentimento que nos fizesse fraquejar na luta pela nossa sobrevivência. Nossa meta era Lisboa e era tudo o que importava.
Depois de estabelecidos em Lisboa, com a ajuda de diversas pessoas tanto da comunidade judaica como outras contrárias à guerra, consegui me reestabelecer no comércio como moldureiro, abri uma loja e continuei a vida com a ajuda de minha mulher Deborah e Anna, nossa filha. Em 1943 nasceu nosso filho Luis.
Ao registrá-lo aproveitei para pedir às autoridades portuguesas a mudança de meu nome Jacques para Jaime. Aqueles alemães que nos pararam na barreira em que levaram meu pai só me permitiram continuar devido à minha origem francesa por parte de meu avô, pai de minha mãe, judia, filha de mãe judia.O nome Jacques, é de origem francesa. O oficial simpatizou com este detalhe naquele momento decisivo e eu nunca soube porquê. Em Lisboa passei a me chamar Jaime, que vem do hebraico Jacó e significa “o que vence, o vencedor”.
Lembro-me de Luis, ainda criança, se queixar da sopa de legumes que Deborah havia feito para nosso jantar. Disse que na casa dele haveria fartura. Nem eu nem Deborah tivemos ânimo para repreendê-lo ou vontade de nos lembrarmos das cascas de batatas e pão duro que comemos para chegar até a presente sopa de legumes tão saborosa no agradável inverno de Lisboa.
Contrariando a média das famílias nas quais as mulheres ficam viúvas e os homens se vão cedo, eu também perdi minha Deborah assim como meu pai Georg tinha perdido sua Sara. Luis, já rapaz, que havia se casado com Maria João insistiu para que eu fôsse morar com eles. Como o apartamento da Avenida de Roma era espaçoso e vinha a caminho um neto, aceitei, vendi a loja e mudei meu estilo de vida. Nasceu Antonio, em 1966 e eu, portanto me tornei avô aos 55 anos. Pretendia dar atenção ao neto já que ao filho nunca fora possível devido à dedicação ao trabalho, o que me parece bastante comum para todas as gerações.
Agora a família era católica pois Antonio era filho de portuguesa. Para os judeus o que vale é a progenitora. Luis, meu filho,embora nascido em Lisboa era judeu por ser filho de mãe judia, minha saudosa Deborah.
Minha filha Anna casou-se com um francês e foi morar em Paris.
Em 1977, quando eu estava com 66 anos fui a Baden Baden rever minha cidade natal. Como era natural tudo estava muito mudado. Consegui localizar fragmentos da minha infância, fragmentos do dia da partida e alguma saudade, termo português por excelência. A vida me fez estrangeiro em meu país e natural do país dos outros. Não podia me queixar, sobrevivi. Meu filho Luis e meu neto Antonio jamais compartilhariam este sentimento tão peculiar que só algumas pessoas conhecem.
Em 1983 Antonio estava com 17 anos e eu com 72. Durante a refeição ele se queixou do frango com arroz servido por sua mãe após um consomé de legumes delicioso sendo que a refeição ainda contava com os deliciosos doces portugueses. Havia pastéis de Santa Clara e os mundialmente famosos pastéis de natas feitos por Maria João para a sobremesa.
- Venha comigo, avô, para a terra da fartura, ó pá.
Antonio estava decidido a emigrar para o Brasil onde, dizia, poderia comer bifes de filé mignon com batatas fritas o quanto quisesse.
Olhei para Luis que não se animou a repreender o filho. Lembrei-me de meu pai que certamente morrera de fome em algum campo de concentração. Desejei a Antonio que o futuro lhe trouxesse um filho que se queixaria da comida de sua casa. Seu filho seria seu mestre.
Levantei-me, por curiosidade e fui até a gaveta onde guardava meu passaporte e observei, mais uma vez, que estava vencido. Nunca tive intensão de renová-lo. Meu pai perdera a vida por causa desta singela caderneta de papel e seus carimbos. Eu não desejava outra vida em outro lugar. Meu passaporte, numa espécie de solidariedade a meu pai, continuaria vencido.

sábado, 25 de junho de 2011

EM OBRAS

A capela do colégio estava em obras. Eu, irmã Marcelina, tinha que seguir os passos apressados da irmã superiora, Gertrudes, que comandava o colégio com rigor e eficiência, características de sua pessoa.
Havia ocorrido uma infiltração na capela e as obras eram necessárias mas não ficariam prontas para aquele início do ano letivo, março de 1969. Ao contrário, parecia que se tornariam as obras de Sta. Engrácia, intermináveis, já que estava sendo difícil contratar uma equipe que comparecesse todos os dias, com regularidade. A mão de obra na cidade serrana do Rio de Janeiro era precária e sem especialização embora os operários tivessem muito boa vontade, a meu ver. A placa EM OBRAS estava fixada na grama, bem em frente à capela e irmã Gertrudes comparecia diàriamente ao local para falar com o mestre de obras.
- Senhor Manuel, porquê o senhor me chamou hoje. Qual a novidade?
-Madre, a infiltração é maior do que esperávamos. Vamos ter que retirar todas as pastilhas do altar e recolocar depois do conserto do telhado. Queria mostrar para a senhora as que achei no comércio, na cor verde.
- Verde? Como o céu pode ser representado na cor verde, seu Manuel? De modo algum. Teremos que achar pastilhas na cor azul. Nem que tenham que vir da capital . Então vão ter que quebrar tudo?
- Seu Manuel assentiu.
- Muito cuidado com as volutas das colunas e com o trabalho de marchetaria que temos na capela porque o senhor sabe que, hoje em dia, é difícil achar quem faça.
- Seu Manuel concordou novamente e irmã Gertrudes virou as costas vindo a comentar comigo: Desde a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, no último mandato do presidente Jucelino Kubitschek que o nosso estado empobreceu em tudo. Este presidente tem o Plano de metas de “Cinquenta anos em cinco.”Humm. Qual a pressa? Hoje em dia nada se faz com pausa. Depois da inauguração da Tv Tupi Rio em 1951,(Penso que em janeiro, vou ver em que dia), que as pessoas não conversam mais, querem ver televisão. O que mais virá para tomar o tempo das pessoas ? Com o governo militar de 31 de março de 1964, ficou mais difícil achar pessoas especializadas para as obras. Parece que todos estão na política, a favor ou contra. A moda na arquitetura, por influência de Brasília também mudou muito. Quem se importa com o barroco ou mesmo o estilo renascentista tão comum na capital?! Agora tudo são linhas retas, sem floreados e ornamentos. Quero preservar os enfeites da capela, espero que não quebrem tudo para consertar as infiltrações. Já mandei retirar os santos com o máximo de cuidado e levá-los para meu escritório. Viu se providenciaram isso?
- Vou ver agora mesmo, madre. Com sua licença.
- Madre Gertrudes gostava de datas completas, de precisão. Além de dirigir o colégio também dava as aulas de catecismo. Algumas alunas, em dificuldade, vinham a mim, para desabafar e eu, em nome de Jesus as ajudava no que me era espiritualmente permitido.
Uma das alunas chamava-se Verônica. Seu pai, desgostoso com a mudança da capital para Brasília, pediu demissão do emprego e mudou-se para nossa cidade. Verônica e a irmã Marcela estavam agora no último ano do curso secundário.
Marcela não costumava pedir conselhos. Mas Verônica recorria muito à mim.
Foi como fiquei sabendo que seu pai era um tanto rude com a mãe. Esta, segundo me disse Verônica, procurava seguir o conselho que São Vicente Ferrer, o santo, deu à uma mulher casada para ter harmonia com o marido briguento: “Quando ele chegar do trabalho encha a boca de água e fique assim com a boca cheia por mais tempo que puder”. A mãe de Verônica, nos momentos críticos, dirigia-se prontamente para a cozinha e bebia um copo de água enquanto pedia a Deus para livrá-la do pecado da ira, o único dos sete que a incomodava. Depois confessava, comungava para se renovar e assim seguia.
Eu não tinha muito o que dizer à Verônica quanto à este problema familiar a não ser lendo trechos da Bíblia: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim , e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo que até sete mas até setenta vezes sete.” Ou, então : “E quem não toma a sua cruz e não segue após mim, não é digno de mim.”
O ano letivo iniciou e assim também as dificuldades de Verônica nas aulas de catecismo. Ela me revelou que contou para irmã Gertrudes, em voz alta, durante uma aula de catecismo, que sua mãe teria interrompido seu pai para fazer uma pergunta corriqueira sobre o jantar e ele, que estava ouvindo música, sentado em sua poltrona, respondeu de forma hostil: - Música erudita e coito não se interrompe!
Verônica quis saber o que era coito e porquê não se podia interromper. Madre Gerturdes, segundo eu soube, ficou vermelha, num misto de pudor e rancor, respondendo à menina : - Isto não é para a sua idade! Esqueça!” Quando soube pedi à Deus misericórdia porque sentia uma forte vontade de rir mas não podia por todas as razões , fossem morais, disciplinares e especialmente religiosas.Recomendei à Verônica que visse o significado da palavra no dicionário e não se preocupasse mais com o assunto porque ainda era cedo para ela pensar nisso. O problema era que todas as aulas de irmã Gertrudes seguiam essa linha. As respostas eram definitivas e sem explicação com uma resposta padrão muito utilizada: Isto é dogma, não se questiona. Aprenda e pronto.
Pude perceber, naquela época que não só Verônica como também outras meninas estavam prestes a sair da escola, pois terminariam o curso em dezembro e estavam se afastando da religião. Isto, a meu ver era grave porque o mundo estava mudando muito e rápido e estas meninas ficariam sem o apoio de um grande mestre. Verônica também estava EM OBRAS, tudo precisava ser derrubado e reconstruído e eu precisava ajudar.
Quando Verônica me questionou sobre a virgindade de Maria lembrei-me que sua irmã, Marcela, talvez tivesse algo a lhe dizer. Marcela já havia se afastado de nós mas era uma boa pessoa que trilhava outros caminhos. Verônica tinha espirito independente mas Marcela, mais que isto, era livre.
- Ooooooooommmmmmm! Oooooooooommmmmmm!
Foi o que ouviu Verônica quando entrou no quarto e sua irmã estava sentada na cama, de olhos fechados, vestindo uma bata indiana e repetindo este som. Um incenso estava queimando. Ela não tinha certeza se podia interromper por isso aguardou um pouco.
Como este ritual lhe pareceu interminável, ela perguntou a Marcela se poderia falar. Marcela abriu os olhos lentamente, sentou-se em posição comum e se prontificou a ouvir a irmã.
- Marcela. Essa questão de Maria ser virgem e algumas outras quetões me incomodam. Batem de frente com a minha racionalidade. Mas eu não sou como você, não poderia viver sem os Santos.
- Verônica, acredite no que quiser. A crença é uma exigência interna, é pessoal.
- Mas eu quero continuar sendo Católica. É a minha formação.
-Está bem. O que sei é que existe uma corrente que diz que houve um erro de tradução da Bíblia. Que a Bíblia dizia “jovem”Maria e isto foi traduzido por “virgem” Maria. Além disso o Messias deveria vir da casa de David e portanto ser descendente de José, que inclusive teve outros filhos com Maria. Este filho, era especial, nasceu para ser um mestre, um avatar. Como Buda, Krishna e outros. Se eu fôsse você não me preocuparia tanto com a “mitologia católica” ou os dogmas. Tome algumas coisas de forma simbólica e não literal e, principalmente, siga o seu mestre, seja Ele quem fôr. Agora me dá licença porque eu quero voltar para a minha meditação.
- Mas só mais uma coisa: Se eu não acredito em tudo da Católica não posso ser Católica!
- Acredite no que você quiser. Seja o que você quiser.
Verônica deixou o quarto e trouxe suas outras dúvidas para mim.
O inverno já havia terminado mas a primavera na serra ainda era bem fria. Estávamos quase no final do ano letivo. Verônica ainda não havia se decidido quanto à Faculdade que iria cursar e as opções na região eram poucas. Já sua vida afetiva estava tomando um rumo porque o namoro com Jonas iria completar seis meses. Mas ela não permitia avanços íntimos. Precisava pensar mais no assunto. Tinha uma noção muito vaga do seu futuro.
Estávamos quase no Natal quando Verônica me perguntou sobre a Páscoa. Não tinha dúvidas sobre o Natal.
- Irmã Marcelina, como Cristo morreu na cruz para nos salvar, nos livrar dos pecados? Isto nos autoriza a pecar?
- Não, Verônica, Ele disse :” Não necessitam de médicos os sãos, mas, sim, os doentes.” Ele ampara os pecadores arrependidos. É como se Ele dissesse: Se caires, levanta, Eu estou aqui. Aliás isto está dito de várias formas no Evangelho, você precisa reler.
- Mas minha irmã fala muito sobre o desapego e sobre a necessidade de convivermos com a eterna mudança, renovação. Onde temos isso?
- Verônica, “Olhai paraos lirios do campo”. Você precisa reler o Novo Testamento. A Páscoa Católica simboliza a renovação, o início de uma nova etapa com a Ressureição de Cristo. Quer maior desapego do que morrer na cruz, doar sua vida, quando poderia ter fujido? E orientou seus discipulos para continuarem pregando Sua palavra, o que Ele ensinou, em nome de Deus.
- Só mais uma coisa. E a questão da reencarnação? Porquê só temos uma vida, porquê só temos uma chance? Não é pouco para evoluirmos? Isso já é coisa da minha irmã... Que, aliás, juntou dinheiro, foi para o Festival de Woodstock e não voltou mais.
Abri a minha Bíblia e li: E passando Jesus viu um homem cego de nascença. E os seus discipulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.
Recomendei à Verônica que continuasse lendo até a cura do cego na esperança que ela entendesse que o processo de evolução espiritual, para mim, e talvez para ela, não necessitasse de mais do que uma vida.
- Verônica, o ano letivo está terminando, não nos veremos com tanta frequência. Lembre-se de que, se você quiser aceitar, Jesus disse: “E eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação do século. Amén.”
- Madre, quero fazer a primeira comunhão ainda este ano.
Verônica se foi e eu me dirigi até a capela onde, finalmente, eu tinha sido autorizada por madre Gertrudes a retirar a placa EM OBRAS. E o fiz com gosto, porque também Verônica estava pronta para uma nova etapa.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

COOPERAÇÃO E COMPETIÇÃO
24.06.2011
“Não concordo com o que você diz mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-lo.”Voltaire.
A competição tem seus defensores. Acham que estimula as pessoas a darem o seu melhor, a se aperfeiçoarem por comparação a seus competidores; acham estimulante; acham que extravasa a agressividade latente e normal que as pessoas têm, que está ligada ao instinto primitivo de sobrevivência. Já ouvi dizer que o futebol é uma metáfora da guerra, ou seja, se os homens não torcessem por seus times, não extravasassem sua ira, sua agressividade vencendo junto com os gols do seu time poderiam estar se matando em guerras.
Não questiono a existência da agressividade na personalidade do ser humano. Generalizando em graus diria que existem: os agressivos, os de postura firme e os mansos. Como considero sábio o adágio: In medium est virtus, no meio está a virtude, acho ideal ter postura firme sem ser agressivo (o que é muito nocivo) nem ser manso ( o que pode gerar distorções como taras e outros desvios de comportamento e, em pessoas de melhor orientação ética e moral pode gerar doenças, somatizações). Para mim, a agressividade bem resolvida revela uma pessoa equilibrada que não se comporta com hostilidade nem é submissa (seja com sinceridade ou por dissimulação).
A pessoa equilibrada, que está bem consigo mesma é pessoa bem resolvida, capaz de ser uma admiradora. Por oposição, a pessoa mal resolvida é capaz de ser uma invejosa.
Pessoa bem resolvida: admiradora.
Pessoa mal resolvida: invejosa.
Ressalve-se que todos nós passamos por bons e maus momentos na vida, ou seja, existem épocas em que estamos mais bem resolvidos e outras épocas que não estamos tão bem. Do mesmo modo existem setores da vida em que nos consideramos mais bem resolvidos e outros não ou não tão bem resolvidos. Há uma dinâmica, nada é engessado.
O que é um admirador? É aquele que aplaude o sucesso do outro, é aquele que se alegra com a alegria do amigo, é aquele que aceita que alguém seja melhor do que ele em algum ou muitos aspectos e não se sente diminuido pelo valor do outro.
O que é um invejoso? É aquele que se sente diminuido diante do outro. Se sente ofuscado diante do brilho do outro. E pode prejudicar ou magoar a pessoa alvo de sua admiração.
Ex.: A atriz americana Elizabeth Taylor, quando estava em má fase, em torno dos 50 anos, havia engordado e não tinha feito plástica, ouviu de uma “fã”: Eu sempre quis ser igual a você, agora consegui. Ou seja, agora que você, ícone de beleza, está uma matrona e eu também, estamos iguais. Isto é o quê senão inveja?
Lembremos que as pessoas podem ser frias (Além de frias, psicopatas) e gradualmente sensíveis e até ultrasensíveis. Evidente que uma pessoa fria se magoa menos fàcilmente do que uma pessoa sensivel.
O que o invejado pode fazer? 1. Diminuir o seu brilho para não ofuscar os outros ( Até que ponto este caminho beneficia a humanidade?) 2. Se afastar do invejoso que lhe quer magoar ou prejudicar.
O que o invejoso pode fazer? 1. Entender que se ele se compara ao melhor deve se comparar também ao pior. Então encontrará um caminho de cura porque sempre tem alguém em pior situação do que nós. 2. Lembrar que aquela pessoa, a invejada, que está lhe causando senso de diminuição não deve ser invejada, porque nunca se sabe o que aguarda aquela pessoa na próxima esquina e algo de muito ruim pode potencialmente acontecer ao invejado ( a qualquer um) e o invejoso verá que não gostaria de modo algum de estar na pele do invejado no momento difícil, portanto não vale à pena invejar.
Sempre alguém será melhor do que nós em algum métier ou em algum momento e isto não deve nos fazer infelizes porque nós não temos que nos comparar, nós temos que nos realizarmos e encontrar a nossa e própria versão de felicidade.
Não vejo necessidade de me estender quanto às vantagens para todos da Cooperação que a todos eleva e a todos beneficia.
Autora: Irene D. Rodrigues

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O combinado não sai caro
20 de junho, 2011

Bruno e Mariana desceram para a piscina do condomínio. Era domingo e tinha bastante gente mas nunca ficava tumultuado porque muitos moradores iam para a praia. O ambiente estava silencioso. A não ser por Bruno que logo que se acomodou na cadeira pegou o celular e telefonou para seu melhor amigo, Gabriel.
Mariana ficou quieta por quase uma hora, tomando sol enquanto Bruno conversava com o amigo.
Teve tempo de pensar em seu casamento, há um ano atrás. Tudo aconteceu melhor do que ela havia imaginado. A igreja estava repleta de lirios brancos, puseram um tapete vermelho, como ela pediu. A igreja, barroca, já tinha diversos detalhes decorativos folheados a ouro, nas capelas, no altar, no teto e também nos santos que ficavam em nichos nos cantos ao longo da pequena nave central. Mariana achava que ouro e vermelho eram as cores que mais representavam o luxo. Tudo o que tinha visto, até agora, nas revistas, nas festas, em algumas viagens deixaram isto bem claro para ela. E no dia em que ela era a protagonista queria tudo em ouro e vermelho, um luxo. Seu vestido ficou romântico e contemporâneo ao mesmo tempo, meio Grace Kelly com Lady Gaga – o costureiro pegou o espírito da coisa. A festa também foi perfeita, Bruno não estava falando no celular.
Lembrou dos votos que os dois fizeram de “amar e respeitar”. Nem era católica. Foi batizada, fez a primeira comunhão e casou na Igreja, como a maioria faz, mais por uma questão de tradição, para usar o vestido de noiva, o véu e a grinalda, ser a princesa do dia diante de todos, o sonho social romântico. Nunca ia à missa e não pensava em Deus. Só pensava que durante seu casamento com Bruno este quase sempre empunhava um celular ao lado dela. Isto era amor e respeito? Ele estava sempre com outra pessoa enquanto seus corpos eram vizinhos. Procurou pensar em outras coisas. Era casada há muito pouco tempo para se dar por infeliz.
Quando Gabriel desligou o celular após falar com seu amigo Bruno, no silêncio do metrô em que todos ouviam sua conversa, calados, sua meta era encontrar os amigos no cinema.Porém, quando viu já estava na Tijuca e teve que voltar tudo. Chegou muito atrasado. Resolveu comprar ingresso para a sessão seguinte porque queria ver Piratas do Caribe 4 mesmo que sòzinho. Saiu caro seu atraso.
Quando o filme Piratas do Caribe terminou Renata, percebendo que Gabriel não tinha se juntado à turma, telefonou para ele mas este não atendeu. Renata foi, então, com a turma para uma pizzaria e insistiu algumas vezes nos telefonemas. Todos atenderam algumas ligações em seus celulares enquanto comiam pizza fisicamente juntos. Quando terminaram de comer, Renata, que estava levemente interessada em Gabriel, quis voltar para o cinema, que era perto para ver se o encontrava e se separou da turma. Procurou Gabriel no café, na livraria, ligou várias vezes e o celular de Gabriel sempre dava fora de área. Viu que, com isto, tinha se atrasado para a formatura do primo e iria ter que tomar um taxi, não dava tempo de ir de metrô ou ônibus. Este desencontro, para sua mesada, lhe custou caro. Conformou-se e fez sinal para um taxi.
O motorista foi bem até Copacabana, antes do celular dele tocar. Renata foi ficando cada vez mais irritada porque o homem só falava abobrinhas com a esposa, parecia esposa, sobre como cortar a carne em bifes e outras bobagens, enquanto dirigia. Para Renata ela estava pagando a corrida e o profissional estava pondo a vida dela em risco porque estava se distraindo na direção enquanto conversava com a mulher. Meu bem pra lá, meu bem pra cá e Renata cada vez mais irritada, porém tímida demais para reclamar. Ficou com medo de que o motorista ficasse agressivo, estivesse armado ou no mínimo a pusesse para fora do taxi o que iria lhe atrasar ainda mais. Com estranhos nunca se sabe. Resolveu telefonar para sua mãe, não que precisasse falar com ela mas precisava se defender, se escudar daquele estranho. Nas cidades grandes, onde as pessoas não se conhecem, quando se sai para as ruas é bom colocar a armadura, se defender na competição, empurrar antes de ser empurrado e , no meio da multidão, em caso de insegurança, desembainhar seu celular e telefonar para alguém conhecido, qualquer um que nos ame e nos valorize enquanto transitamos no meio de estranhos para quem não temos o menor valor e a menor importância. Se ela não tivesse o que dizer, sua mãe certamente teria, nem que fôsse reclamar porque todos a estavam esperando para irem à formatura do primo. Outro dia sua mãe reclamou, durante uns quinze minutos, sobre o aumento dos preços da manteiga, do feijão e de outros itens e enquanto declinava a série de itens Renata pensava no horrivel fim de semana que a esperava, tendo que estudar matemática. Já que a mãe estava falando de comida aproveitou para pedir que fisesse um bolo de laranja, seu consolo nas penosas horas de estudo. Enfim chegou no Leblon, livrou-se daquele motorista, a corrida saiu cara mas em compensação o celular tocou e era Gabriel. Combinaram de se encontrar no dia seguinte. Quem sabe ela teria uma chance com ele.
Mariana acordou e olhou com prazer para a decoração de seu quarto, tudo novo, escolhido por ela e Bruno, para o apartamento, também novo, no condomínio que tinha tudo, como ela queria: sauna, piscina e play para os filhos que viriam. Na casa de seus pais quase nada mudava desde que ela tinha nascido, a não ser os eletrônicos. E só tinha garagem para um carro e olhe lá. Ela passou os anos da faculdade procurando vaga na rua quando chegava, um suplício diário. Agora, não. Tinha tudo o que queria. Olhou o mar ao longe, linda vista, indevassável. As cortinas eram apenas elementos decorativos e não defesa da intimidade.
Bruno já tinha saído para o trabalho. Ela tinha marcado com duas clientes, precisava se apressar. Por enquanto estava trabalhando com decoração. Mas ela era jovem, poderia expandir, conseguir contratos para decorar escritórios, portarias de prédios porque antevia seu progresso nesta direção já que gostava mais de decoração do que de arquitetura pròpriamente.
Mariana desceu até a garagem, passando por alguns vizinhos que cumprimentou por conhecê-los da piscina e das reuniões de condomínio. Alí iria criar seus filhos como nas cidades pequenas, onde todos se conhecem e se ajudam, diferente desta selva de pedra onde foi criada, embora adore sua cidade. Ligou seu carro, o rádio, o celular com os fones e não demorou nada para a primeira ligação do dia acontecer, era sempre assim. Porém se distraiu com as ligações, se atrapalhou no trânsito, teve que fazer retornos longos e cansativos e resolveu partir para a segunda cliente. A primeira cliente telefonou muito irada e cancelou seu serviço de forma quase grosseira, como uma menina mimada. Mariana teve que se conformar: Se não se cumpre o combinado, pode sair caro.
Alguns meses se passaram, Bruno não perdia a mania de falar no celular na companhia de Mariana, em qualquer lugar onde estivessem. Por outro lado, Gabriel, seu amigo e frequentador do apartamento, estava cada vez mais presente e não tirava os olhos dela. Enquanto Bruno falava no celular Mariana e Gabriel iam se conhecendo cada vez mais.
Até que um dia, tudo ficou claro para os dois. Mariana não perdeu tempo. Explicou, como pôde, para Bruno sobre sua afinidade com Gabriel. Arrumou suas malas e foi para o apartamento de Gabriel, que já a esperava para recomeçarem suas vidas. Também era um apartamento novo, num condomínio que tinha tudo e a decoração estava boa. Só teria que jogar fora todos os objetos que foram escolhidos pelas ex-namoradas de Gabriel.
Bruno demorou mais a entender a situação. Para ele não foi tão simples assim. Ia para a piscina, sentava e procurava respostas. Tinha conversado com seu lúcido pai, com sua perspicaz mãe, com seu preparado psicanalista, com um padre e até mesmo um rabino estudioso da Cabala mas ninguém conseguia consolá-lo. Desligou o celular que vibrava de forma irritante, o sol bateu com força em seus olhos e foi então que, olhando para o celular percebeu o quanto tinha escondido seu coração de Mariana. O quanto tinha se recusado a se entregar àquela relação. O quanto tinha se defendido atrás daquele celular e todas as ligações vãs. Neste momento viu Mariana chegar com Gabriel vindo em sua direção. Combinaram o horário em que o caminhão iria passar para pegar os objetos mais pesados que pertenciam a Mariana e ainda estavam no apartamento de Bruno.
Mariana se afastou com Gabriel. Bruno a olhou finalizando seu luto. Reconheceu sua culpa, não tinha cumprido o combinado nos votos do casamento. Não precisava mais se rebelar: Porque logo com ele? Porque logo com Mariana? Teria que se acostumar com sua ausência. Aceitou a perda, resolveu se desapegar. Quando Mariana já ia longe, quase fora de sua vista disse, sabendo que não seria ouvido por ela mas que seria ouvido:
- Vai com Deus, Mariana!

terça-feira, 14 de junho de 2011

A CULPA


Sentiu-se culpado ao ver o filho chorando na sua frente, frustrado porque a roda do carrinho quebrara e ele não tinha como consertar àquela hora da noite.
Tentou mas não conseguiu e a criança continuava chorando. Ele culpado.
Culpado foi para a mesa de jantar porque a comida já estava fria pois sua mulher chamara-o para jantar a cerca de meia hora enquanto ele lutava para consertar o carrinho do filho.
Durante o jantar ela lembrou que a conta do açougue vencia no dia seguinte e mais uma vez sentiu-se culpado porque ele não poderia pagar a conta, seu salário ainda não estava disponível, só no dia seguinte. Falaria com o açougueiro pela manhã, antes de ir para o trabalho.
Olhou aquele casal de pinguins em cima da geladeira e sentiu-se culpado porque não achava brega pinguim de geladeira sendo que todo o mundo achava. Não entendia porquê. Geladeira lembra frio, pinguim vive no frio, pinguim combina com geladeira. Que haveria de errado nisso? Mas as pessoas achavam brega, então ele estava errado e deveria se sentir culpado.
De manhã, ao tomar seu café respingou um pouco de café na camisa e sua esposa, com cara irritada, levou a camisa para tirar a mancha. Sentiu-se culpado. Não sabia se deveria esperar que sua esposa retornasse com a camisa em ordem ou se deveria pegar outra, mas aí sujaria mais de uma camisa por dia, o que faria com que se sentisse culpado.
Aguardou uns quinze minutos até que sua esposa retornou, com cara de zangada, sem a camisa e nada disse, o que poderia significar que ele deveria ir buscar outra camisa e sair logo, antes que fizesse algo mais de errado
No ponto de ônibus só conseguiu pegar o terceiro que passou, já que as pessoas se acotovelavam para pegar os ônibus a fim de não chegarem atrasadas no trabalho. Ele se sentiria culpado se acotovelasse uma senhora que poderia ser sua mãe portanto ele chegou atrasado no trabalho, o que o deixou culpado mesmo antes de levar uma bronca do chefe. Não tinha argumentos. Ele que saisse mais cedo de casa. Culpado.
Isso depois de ter passado pelo desconforto de estender sua última nota de cinquenta reais para o trocador que o olhou com maus bofes mas teve que aceitar porque ele não tinha o dinheiro trocado para pagar a passagem. Culpado.
Passou o dia tentanto não ofender ninguém o que é quase impossível para quem que, como ele, trabalhava atendendo ao público justamente no setor de Reclamações. Sim, a culpa deveria ser sua e não da empresa. Pelo o menos as pessoas acalmavam quando viam que ele não procurava justificar os erros mas sim, corrigi-los. Mesmo assim a sensação de culpa só o deixava quando encerrava o expediente. Até que outra coisa acontecesse.
À noite, após passar na padaria e sentir-se culpado porque não lembrara de comprar um sonho para sua patroa, viu de longe, quando chegava perto de casa, sua mulher, a patroa, beijando na boca um homem que se afastava. Congelou. Ficou atrás da árvore para ter certeza que era mesmo sua patroa. Ela entrou em casa. Era. Pensou que a árvore ia cair e a culpa seria sua mas, não, era tontura mesmo e ele é que estava tonto, não a árvore, lógico.
Dirigiu-se cambaleante para casa e entrou. Olhou sua mulher que o recebeu com toda a naturalidade, como se nada estivesse acontecendo.
Foi até a cozinha colocar os pães na mesa e reparou nos pinguins que pareciam sorrir.
- “Ah, éee?!”, falou em bom tom. Sua mulher até estranhou.
Foi até o banheiro e pegou esparadrapo. Achou a tesoura e pegou a caneta da filha, na mochila, sem pedir licença à menina, o que a fez estranhar.
Sentou-se e escreveu em dois pedaços de esparadrapo: a culpa é sua.
Na cozinha colou os esparadrapos nos pinguins, um em cada um, deixando-os bem visíveis..
Sentou-se , fez seu lanche sem dar maiores explicações e foi até a sala. Sua mulher assistia TV, como sempre , só que era quarta-feira, dia de futebol. Pegou o controle, trocou o canal para o futebol e ela que se atrevesse a reclamar.
Ela foi até a cozinha, nada disse, e para o quarto se dirigiu.
Ele olhou para trás e viu que os pinguins não sorriam mais.Estavam ligeiramente voltados um para o outro com os dizeres dos esparadrapos acusando-os, reciprocamente: a culpa é sua.
Enfim agora ele entendia que a culpa nunca mais voltaria para ele porque estava sendo discutida eternamente pelos pinguins e enquanto isso, que cada um carregasse suas culpas, ele não carregaria mais o mundo nas costas.
Virou-se para ver um gol contra o Flamengo mas não esquentou a cabeça. A culpa, com certeza não era dele.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Comida de gato
Junho 2011

Shaina acordou por volta das sete horas, como de costume, depois que seu marido morreu, a cerca de dez anos.
Vive só, na mesma casa em que mora há mais de quarenta anos, no bairro de Sta. Teresa, no Rio de Janeiro. A casa ainda está em bom estado, não precisa de grandes reformas, o que convém à Shaina, já que vive com a limitada pensão de viúva que seu marido lhe deixou. A casa e a pensão. Não tiveram filhos.
A localização da casa, perto do Largo dos Guimarães, nesta colina, próxima ao centro da cidade lhe convém porque a atividade turística dos últimos anos torna a área mais movimentada e sua casa mais segura.
Shaina não vive, pròpriamente, só. Tem a companhia de muitos gatos que entram e saem de sua casa livremente. Por sorte - “O que será sorte?”, pensa ela, às vezes – não tem nenhum gato com defeito, ou seja, com olho furado, mancando de alguma pata, com rabo mordido ou machucado... Caso tivesse trataria deles do mesmo jeito, não deixaria de lhes dar abrigo e comida.
Shaina herdou este nome difícil de sua avó, indígena. E também os cabelos, lisos e grossos, brancos há muito tempo pois já está com quase setenta e um anos de vida. Disseram-lhe que o nome significava “Alta e forte” ou “No meu caminho”. Para ela o chato era ter que explicar sempre que seu nome se escrevia com “s” e agá. Quanto à pronúncia era fácil, as pessoas pegavam logo: Shaaaina, com a primeira sílaba mais forte.
Se levantou da cama, nesta terça-feira, e logo arrumou os lençóis. Depois de fazer sua higiene pessoal foi abrir a porta para os gatos que conseguiram chegar a tempo de dormir dentro de casa.
Quando abriu viu que Pepita, uma gata que aparentava menos de um ano de idade e que sempre chegava a tempo de dormir dentro de casa, estava tremendo um pouco e a olhava com tristeza. Sentou-se do lado de Pepita, acariciou-a e disse : Já cansei de ensinar a vocês que a vida não é questão de pressa nem de vagar, é timming. Como você é novinha, vou te explicar do meu jeito: É ritmo, tempo conveniente. “Saber” o momento certo de fazer alguma coisa, entendeu? Você sabe que eu fecho a porta por volta das seis da tarde então, se quer dormir dentro, chegue antes, Pepita.
Shaina continuou a acariciar a gata certificando-se que Pepita não tinha nenhum problema de saúde, só estava chateada mesmo. Para ela, ao contrário do que muitos dizem, os gatos têm expressão facial. Identificava algumas: curiosidade, medo, desconfiança, bem-estar, serenidade e até dúvida.
Resolveu dar um leite morno para Pepita, já que tinha feito doze graus na madrugada e os gatos que dormiram fora, coitados... Shaina espalhava mantas baratas pela varanda de sua casa mas os que conseguiam chegar a tempo de dormir dentro de casa ficavam mais abrigados, lògicamente.
Se dava ao trabalho de ter um recipiente com areia para eles, bichanos, limpos, que usavam o “banheiro”comunitário sem criar nenhum problema.
Quanto à comida de gato, era angú e bofe mesmo, não dava para melhorar isso. Já tinha que comprar areia para os que dormiam dentro. O saco de um quilo de ração estava custando dezesete reais e cinquenta centavos, muito caro para comprar sempre. Leite, então, era um luxo que daria agora para Pepita, só porque a gata estava precisando de aconchego.
Olhou para o céu. “E eu que pensei que ia chover! Quem é que sabe o dia de amanhã?...” Acreditou que Pepita a olhava como quem pergunta: E todo o seu passado? “Que importa o passado, passou.
Entrou para dar leite à gata, afastando os outros fregueses do luxo. Depois foi para o quintal, seguida pelos gatos de dentro e os de fora, distribuindo fubá e bofe nos pratos espalhados onde todos comiam sem brigas.
Tomou seu café da manhã e se vestiu, arrematando, como sempre, com seu casaco vermelho, o qual lavava uma vez por mês já que não conseguia se separar dele, a não ser no alto verão.Também não dispensava um último ítem que era uma de suas pulseiras de artesanato. Escolheu a de bolas de madeira pintadas na cor marfim, o que ia bem com sua pele morena herdada de sua mãe, de origem negra. Suas feições, entretanto, eram de mulher branca, da parte de pai. Sentia-se uma autência brasileira, com raízes nas três raças. “Raça, não, que só existe uma raça: a raça humana.” Porém poderia sair por aí com uma faixa escrita: Ordem e Progresso. “Que lema bonito”, pensou.
No entanto seu sangue índio falava mais forte e a natureza era o que lhe chamava mais atenção.
Precisava passar no açougue e subir a Almirante Alexandrino para afiar a tesoura grande porque estava em tempo de cortar seus cabelos. Ao supermercado planejava ir no dia seguinte e na quinta-feira pretendia olhar os preços dos itens na farmácia. Tinha que gastar pouco e no dia a dia para não faltar o necessário.
Quando voltou, disposta a enfrentar a tarefa de cortar os cabelos ainda antes do almoço, bateram palmas à porta. Tocaram a campainha também. Ela foi ver o que era e teve que sair até o portão.
Era um entrevistador do Ibope. Ouviu, por delicadeza mas tão logo pode cortou a fala do rapaz dizendo: Não posso atender, sinto muito.
Afastou-se do portão, sem pressa, porém não mais respondeu até entrar em casa. Não era prudente fornecer informações para ninguém. Eles que montassem suas estatísticas generalizadas e por amostragem com outras pessoas, tudo era mesmo relativo.
Shaina foi para o banheiro cortar seus cabelos. Usava a técnica de juntá-los no alto da cabeça, debruçar para a frente e fazer o corte, com a tesoura bem afiada. Era sempre a mesma coisa, de tempos em tempos.
Depois de servir a comida dos gatos almoçou sossegada prestando atenção no silêncio e lembrando do barulho dos bondinhos amarelos do bairro.
Assim que terminou de lavar a louça e guardar tudo foi para o quintal olhar as plantas enquanto alguns gatos lhe importunavam a caminhada, se esfregando em suas pernas para pedir carinho ou dar aprovação à sua protetora. Ela os acariciava e os afastava para ver as plantas. “Essas gibóias estão precisando de rega”. “Esta planta morreu, vou arrancar logo”.
O telefone tocou. Shaina não quis atender. Devia ser da Associação do Bairro que sismava que ela se sentia solitária. Ela cumprimentava a todos da vizinhança, ouvia a alguns, por todos esses anos. “Que mais eles queriam?” pensava.
Não era dada a filosofar mas fez uma rápida avaliação : Não sou uma idosa esquisita que mora sòzinha numa casa e não se dá com ninguém. Acha que não precisa de ninguém. Não é o caso.
Sentou-se. Olhou os gatos que iam e vinham livremente, há anos. Uns sumiam, outros apareciam. Os mais constantes ganhavam nomes. Aos outros chamava de bichanos.
Anotou mentalmente que no sábado iria comprar, no botequim, suas duas latinhas de cerveja para o domingo.
Lembrou, com certa satisfação, que à noite tinha o programa sobre capoeira na Tv Brasil. Não sabia que esta dança e esporte também era considerada arte marcial. Chegou a anotar em um caderno as palavras: chutes, rasteiras, cabeçadas, joelhadas, cotoveladas, acrobacias. Tudo isso remetia à política brasileira. Gostava da música.
Olhou o céu, as plantas. Sentiu o cheiro do ar do inverno carioca. Olhou os gatos, apaziguadores, espalhados por todo o quintal. “Gosto mais de bicho que de gente”, pensou, sem querer desprezar a sua espécie tão precisada de misericórdia.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Restaurante Japonês
Maio 2011
Gravando. Estou de costas para as pessoas, olhando pela vidraça do aeroporto, em São Paulo, aguardando a chamada do vôo para Paris.
Comprei este brinquedinho novo, um Iphone da Apple. É o único item de consumo que me mobiliza, de resto o comércio fecharia as portas se dependesse de mim.
Ok. Já que o vôo está atrasado, como sempre, vou gravar alguns dados pessoais, como costumo fazer. Me chamo Pedro, por incrível que pareça, já que sou nissei, filho de japoneses. Meus pais vieram para o Brasil pouco antes do meu nascimento e acharam conveniente me batizarem na Igreja católica com o nome de seu fundador. Queriam falicitar minha adaptação ao Brasil, onde eu seria e fui criado.
Tenho quarenta anos e moro com meus pais. Tive namoradas mas não me casei. As mulheres me assustam um pouco porque são muito reivindicativas. Uma que quase se mudou para minha casa sem ser convidada, mudava os móveis do meu quarto de lugar quase todas as semanas, jogava fora objetos de decoração e comprava outros a seu gosto, foi invasivo demais, tive que romper. Tentei uma nissei, como eu, mas ela, apesar da criação mais contida própria de um lar japonês, já tinha assimilado essa extroversão brasileira e era bastante contemporânea e decidida, escondia seu lado suave, queria vencer. Não é que eu seja machista e esteja procurando uma mulher submissa mas não posso abandonar meus pais e uma mulher que case comigo terá se adaptar a nós e não o contrário, é difícil.
Enquanto isso moro com meus velhos pais, a quem reverencio, porque me deram todos os recursos já que sou filho único e hoje estou satisfeito na vida profissional graças à eles, que me deram as condições.Trabalho, tenho amigos e amigas e muita privacidade no meu confortável apartamento nos Jardins, em São Paulo. Meus pais não me dão trabalho. Ela cozinha, ele lê. De manhã ela vai dar seu passeio, comprar alimentos para um ou dois dias. Ele vai para o terraço cuidar dos seus bonzais. Fui criado neste sereno lar japonês. Nele ninguém grita.
Vou embarcar e me acomodar, depois volto a gravar.
Nada como planejar uma viagem com bastante antecedência porque assim consigo o que quero: poltrona do avião na janela, quarto de hotel adequado ao meu gosto... Não gosto de imprevistos, surpresas, improvisações. Mas se acontecerem, me adapto.
Hospedei-me no Hotel des Marronniers, na rue Jacob. Consegui apartamento no quarto andar onde tenho sossego total, vista para o jardim, os telhados de Paris e a Torre da Igreja de St.- Germain-des-Prés. Gosto deste bairro, quartier como se diz aqui. Posso ir à pé aos museus que quero ver dessa vez: o Musée d’Orsay, o Musée de l’Órangerie e, claro, o Louvre. Vim só pelos impressionistas. Mas posso deixar de ir ao Louvre. Tenho uma amiga que diz que cada vez que vem a Paris entra correndo no Louvre, olha a Mona Lisa e vai embora. Como bom japonês eu sorrio, compreensivamente, mas tenho que me controlar porque, para mim, o Louvre é museu para se ficar vendo por um ano, ao menos, e se fôsse possível, levar um colchonete e dormir lá dentro para não perder tempo. Admito que as viagens estão mais curtas e apressadas, como tudo em geral. Como não saber disso morando em São Paulo? Porém minha origem me salva de adotar o stress como norma. Está na minha genética o retraimento, o controle, o desconforto em mostrar demais os sentimentos. É curioso que, para os ocidentais, se você recebe um presente deve desembrulhá-lo na hora, na frente de quem lhe deu e expressar sua alegria; é falta de educação não fazê-lo. Já o japonês não abre o presente na frente de quem lhe deu, seria falta de educação, porque a pessoa pode não gostar do presente que recebeu e seria desagradável que isso transparecesse de alguma forma. Tudo está sendo gravado.
Após descansar pela manhã, no hotel, fui procurar um restaurante no caminho para o Musée d’Orsay, o que não é nada difícil em Paris. Comi bem e não foi caro relativamente à qualidade da comida. Não é preciso ir a restaurantes caros para se comer bem aqui.
Dirigi-me ao andar superior, one ficam os pintores impressionistas e neo-impressionistas. Apreciei Almoço na Relva, de Edouard Manet, Baile no Moulin de la Galette, de Renoir, La Belle Angèle, de Gaugin. Olympia, de Edouard Manet, Camponesa de Breton, de Paul Gaugin, Ninféias Azuis de Claude Monet. Há muito o que ver mas vim pelos impressionistas.
Sentei-me num café e pedi um delicioso doce da famosa patisserie francesa, que apontei com o dedo e degustei com um café. Preciso uma pausa para assimilar o que vi e tecer considerações. Gravando . Porquê o impressionismo me impressiona? Sim, é o que eles queriam, causar uma impressão forte por obrigar o apreciador a participar da obra, quase que a completá-la por vezes. Não fazia sentido, depois do advento da fotografia, continuar retratando a realidade. Tiveram que buscar outros caminhos. A pintura soltou as amarras do realismo, do academismo. Trataram de se preocupar com a luz, o movimento, em pincelada soltas. Bem verdade que a perícia continua presente, quando eles querem, mais em alguns do que em outros. Edouard Manet era muito preciso quando queria. Como na vendedora de bebidas: Un bar aux folies Bergère. O quadro apresenta vários detalhes, não é pintura de preguiçoso, ele trabalhou. Curioso que colocou a moça bem no centro do quadro, o que não é muito estético porém com a sua sombra quebrando a simetria. O quadro do copo com quatro rosas me agrada mais do que a famosa Olympia. Além da transparência da água no copo, os tons das rosas vão descendo do vermelho para o amarelo e a rosa branca, mais perto de nós, formando um conjunto que parece seguir as regras da ikebana, os arranjos florais japoneses: poucos elementos, o sol (o pai), a lua ( a esposa) a terra (o filho) em alturas decrescentes, por questão de hierarquia.
Muito prazer me deu o quadro Pommes et oranges de Paul Cézanne. Tema simples, arranjo que encontra harmonia numa ordem imperfeita, imprecisa. Muito agradável. Quanto à Edgar Dégas, gosto de La classe de dance. De Pierre Auguste Renoir prefiro Danse à la ville do que o mais famoso Bal du Moulin de la Galette. Também gosto de Two sisters (On the terrace).
Dá tempo de ir à pé até o Musée de l’Orangerie. Nã sei se vou ao Louvre e deixo este para amanhã. Daqui para o Louvre é só atravessar a Pont Royal sobre o rio Sena, para a Rive Droite, o lado direito do rio, e à direita, no Quai (Cais) du Louvre, lá está ele.
Não. Deixo o Louvre para amanhã.
No Musée de l ‘Orangerie (Entre o Jardin desTuileries e a place de la Concorde) apreciei Cézanne, Renoir e a série das Ninféias , de Claude Monet. Nas Nymphéas bleus, a distribuição das flores me parece fugidia, leve, induz a entrar na tela. Gosto de Le Bassin au nymphéas, harmonie verte. Um espetáculo que mantém suavidade.
Preciso repousar a vista, sentar um pouco. Processar. Penso em Van Gogh mas não vou falar de girassóis. Gravando. Embora o Amarelo de Van Gogh me impressione muitíssimo. Mas o que mais o representa para mim é Aos portões da eternidade. O desespero deste homem cansado, magro, simples, aos pés da lareira que não aqueciam nem confortavam a sua dor, era ele, Van Gogh. Até mesmo a posição dos pés, que não estão nem para dentro, nem para fora, estão ali, obedientes, aguardando enquanto o homem vive a sua angustia.
Isto me faz pensar no fato das mulheres apreciarem tanto um “homem sensível”, como elas dizem. Prefiro me mostrar calado e prático no trabalho para poder escolher à vontade, senão minhas colegas descomprometidas vão querer se casar comigo...
Gauguin era mais extrovertido. Penso que ele não sofria, nem era equilibrado. Ele era prático. Sua mão é mais pesada, acho eu. A mulher de azul me parece bem agradável e pergunta com a pose e os olhos “Quando é que isso vai acabar, quero beber água, ir ao banheiro, qualquer coisa”. É Gauguin.
Vou direto para o Palais de Tokyo, jantar no Tokyo Eat. Desço no metro Alma, em Chaillot, para a esquerda, pela Avenue de New York e lá estou. Na volta desço no metro St.-Germain-des-Prés e ando à pé até o hotel, na rue Jacob.
Quando chegar em casa, em São Paulo, guardo a gravação em CD na gaveta, ainda cabe, catalogada como viagem à Paris, maio 2011, Impressionistas.Não importa o destino das minhas gravações. Importam as minhas lembranças que guardo comigo durante muito tempo enquanto enfrento o trânsito e a poluição do ar de São Paulo no cotidiano dos dias de trabalho.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

A PORTA BRANCA
Maio 2011

- Maria, avisa pra minha mãe que eu já estou no consultório. Cadê ela. Chama ela aí. Hummm. Diz pra ela me ligar.Tchau.
- Não, é a Maria lá de casa, não é você não. A doutora Cláudia está com paciente? Ok, eu espero.
“Sumiu por trás dessa bendita porta branca, de novo. Estou esperando há uns quize minutos. Se a doutora Cláudia não está atendendo porque não me chama logo, pra acabar com essa aflição? Melhor não. Melhor a Vânia chegar.”
- Fala, mãe. Falo eu? Que que você quer que eu diga? Estou super nervosa, a Vânia ainda não chegou. Se esse exame der positivo eu me mato! Aliás, não, a doença me mata. Eu não quero morrer. Como calma?! Não dá pra ficar calma! Mãe, vou desligar e esperar a Vânia chegar. Eu estou me controlando... Estão tocando a campainha, deve ser ela. Tchau , mãe. Aviso, sim. Ok.Ok. Tchau.
- Caramba, Vânia, já estou sòzinha nessa sala de espera há uma eternidade...
- Aposto que você chegou há uns quinze minutos.
- É. Uma eternidade pra quem vai receber o resultado de um exame que pode ser uma sentença de morte.
- Calma, Suzie. Não somos mais crianças, estamos com quarenta anos e desde garota que você é assim, asustada. Pensa positivo. Quer uma frase batida? Vai dar tudo certo.
- Ah, não, Vânia. “Vai dar tudo certo”, “Tem que correr atrás”e “Com certeza”não dá mais pra aguentar.
- Ha,ha,ha!... Nem bolero de Ravel, Memories, Deixa a vida me levar... Ha,ha,ha... Roda Viva é boa, é muito boa, não acha, Suzie? Ha, ha, ha... Está rindo, Suzie! Bom sinal. Você está mais descontraída.
- Tá bom! Mas respeita os clássicos musicais, por favor. Odeio gente debochada! Não é porque você está aqui esperando um exame que pode me condenar à morte que eu vou te aliviar, nem você sendo minha melhor amiga de infância!
- Caramba, Suzie! Fica calma..
- Você veio aqui pra me dar força ou pra enterrar de vez! Quer que eu entre em depressão? E se o exame der positivo, que que eu faço? Aquela bendita porta branca não abre, que será que a Dra. Claudia e a assistente estão fazendo há tanto tempo?
- Calma, Suzie. Desculpe. Tem razão. Mas não passou tanto tempo assim, só quinze minutos. E você não vai morrer. Tem que pensar positivo, isso tem. Pára de ficar assustada, concentra, firma o pensamento em que você está com saúde, vai, firma.
- É porque não é com você. Fácil falar. Tantos lugares que eu queria conhecer... Sempre adorei viajar, já que a gente não casou, né sister.
- Casar com quem? Os homens estão todos casados... Não vou dizer o resto que é “polìticamente incorreto”. Eu queria voltar a Bonito. Voltar ao Pantanal. E você, Suzie?
- Eu queria ir pra Porto de Galinhas.
- Mas você é totalmente urbana, quer fazer o quê em Porto de Galinhas?
- Com aquela infra-estrutura toda, meu bem, porque não? Só por uns dias. Também queria conhecer São Luis do Maranhão e talvez Recife e Olinda.
- E o exterior, Suzie?
- Estou fora. Aliás estou fora de tudo, do planeta, da vida, se o exame não vier bom, quando é que essa maldita porta branca vai se abrir?
- Melhor dizer bendita, Suzie. Calma. Você estava distraída e voltou pra expectativa. Que situação! Não sei mais o que dizer. Já estou perdendo o controle, eu é que vou ter um ataque do coração, já, já...
- Nem posso te oferecer um copo d’água, Vânia, a garota não aparece... Pra quê que aquela Betty Friedan queimou soutiens, lá nos anos ’60? Nós continuamos tão... frágeis!
- Ôxi, Suzie, qualquer pessoa fica frágil numa situação dessas, não retroage. Contemporânea, se faz favor...
- Sei. Se eu tiver tempo...
- Está chamando, Suzie. Quer que eu vá com você?
- Não. Fica aí.
.........
Suzie voltou com um sorriso nos lábios. O exame deu negativo. Alisou a porta branca, deu beijinho e pediu desculpas por tê-la chamado de maldita. Olhou pra Vânia, com aquele olhar de cumplicidade amiga que partilhavam durante tantas décadas e disse: Vamos viajar!

domingo, 22 de maio de 2011

A ALMOFADA COR DE ROSA


- Doutor, não consigo entender como essa almofada cor de rosa aparece reiteradamente nos meus sonhos!
- Calma, não quer sentar primeiro, ou deitar no divã?
- Já estou sentando, obrigado.
- Você parece muito ansioso. Vamos recomeçar com essa questão da almofada cor de rosa. Quando foi que começou isso mesmo?
- Há dois meses.
- E... Aconteceu alguma coisa importante há dois meses atrás? Tente se lembrar.
- O senhor me pergunta isso em todas as sessões! Eu não sei dizer, não me lembro de nada marcante...
- Pense mais, tente um pouco mais...
- Não houve nada, doutor, já cansei de pensar.
- Então alguma coisa, algum objeto cor de rosa que tenha aparecido no seu dia, naquela época...
- Há dois meses atrás?
- Sim, tente...
- Huum... Nada...
- Mas...
- Espera! Teve um lance da minha mulher tirar um papel cor de rosa do bolso... Sim, isso aconteceu.
- Descreva melhor a situação, por favor.
- Bem, a gente se encontrou pra almoçar, no centro da cidade e ela tirou um papel cor de rosa do bolso, riu e não disse nada.
- E você, não perguntou nada?
- Não, nem me toquei. Ela vive escrevendo bilhetinhos nesses papeizinhos afrescalhados, essas coisas que mulher gosta... Hello Kitty, sei lá.
- Peraí, mas a tua mulher já é grandinha pra gostar de Hello Kity, quem gosta disso é minha neta! É isso mesmo, ela gosta disso?
- É frescura de mulher, doutor. Bloquinhos, coisas assim. É claro que ela não usa pulseirinha, blusinha, bolsinha de Hello Kitty, era só o que faltava! Isso até me chateia porque quando quero escrever um bilhete qualquer, vou procurar nas gavetas e só acho bloquinhos e papeizinhos de Hello Kitty , cor- de- rosinhas. Já disse a ela mas ela disse que se eu quero bloquinhos eu que compre os meus.
- Mas, então , volte para os sonhos. A única pista que você tem são esses bloquinhos que lembram a almofada porque têm a mesma cor. É isso?
- O senhor é quem sabe! Eu não vejo relação nenhuma entre uma coisa e outra.
- Mas existe uma. Vamos tentar esse caminho. O bloquinho, ou melhor, o papelzinho cor-de-rosa que sua mulher tirou do casaco e recolocou ficou sendo uma coisa oculta pra você. Algo que você diz não ter se interessado na hora porém que você percebeu. E a almofada que aparece nos sonhos não deixa de ser oculta porque você não sabe o que é, do que se trata, certo?
- É mesmo! Pode ter relação, sim, uma coisa com a outra. Mas ainda não faz sentido pra mim.
- Quanto mais pra mim que não sonho com almofadas cor-de-rosa! Estou brincando. Mas me diga, de que tamanho é essa almofada cor-de-rosa que aparece no sonho?
- Caramba, doutor, dois a zero pro senhor. A almofada é do tamanho desses papeizinhos que a minha mulher usa pra anotações.
- Pequena assim?
- É.
- Bem, poderia ser uma almofada dessas que as mulheres usavam antigamente pra segurar alfinetes enquanto costuravam mas isso não é do seu tempo nem do tempo da sua avó. É do tempo da minha avó, no máximo. Talvez da minha mãe...
- Quem falou? Tem um lance, sim. Me lembro. Vagamente mas me lembro, caramba... Quando eu era pequeno e às vezes ficava com a minha avó, eu ficava brincando no chão, aí a gente ouvia o barulho de porta e era o meu avô chegando. E quando ele entrava minha avó fincava sempre um alfinete na almofadinha cor-de-rosa... É isso... Engraçado que ela sempre fincava um alfinete bem na hora que ele chegava, como se ela estivesse com raiva mas não quizesse dizer nada.
- Hum... Interessante. Será que, talvez, é só uma hipótese, que talvez ela fizesse isso porque poderia ter algo de misterioso na vida do seu avô e que ela se recusava a saber? Mas talvez intuísse que boa coisa não era, pelo o menos pro lado dela...
- Como assim? O senhor está dizendo que talvez meu avô tivesse uma amante?
- Pode ser. Hoje em dia as pessoas se separam se não confiam mais uma na outra. Em geral se separam, mas antigamente, no tempo da sua avó, era diferente, certo?
- E o que isso pode ter a ver comigo?
- Será que, pelo o fato de você não ter querido saber do que se tratava aquele bilhete, que a sua mulher tirou do bolso, olhou, sorriu e guardou de novo...será que você não estaria reproduzindo o comportamento da sua avó? Não perguntou porque não quer se aborrecer, não terá sido isso?
- Mas, peraí, doutor... Deixa eu pensar... Bem, eu confio na minha mulher.
- Será?
- Acho que sim! Não acho que tenha motivos pra desconfiar dela, nosso casamento é ótimo, normal...
- Quantos anos de casados mesmo?
- Quinze, doutor. Não é pouca coisa. O pessoal está se separando muito antes disso. A gente até tem dificuldade de manter casais de amigos porque de repente tudo muda e é um cano pra nós, pros amigos em geral.
- Voltando ao assunto... Seu casamento é normal mesmo? Olha que quinze anos é o tempo limite tipico do “ou vai ou racha”.
- Por quê?
- Porque nos primeiros três ou quatro anos o casal está curtindo a novidade do casamento, nos seguintes está curtindo a novidades dos filhos. Primeiro um, depois outro, às vezes o terceiro.
- Quê isso, doutor, ninguém taí pra ter mais de dois filhos hoje em dia, pelo amor de Deus.
- Vá la que seja. Ainda assim vem o periodo do bebêzinho bonitinho, o irmãozinho ou irmãzinha, viram crianças... até que começam a ficar adolescentes chatinhos, com onze, doze anos, o casal com seus quinze de casados mais ou menos... Enfim, generalizando, para alguns parece que tudo perde a graça ao mesmo tempo nessa época.
Que você diz sobre o seu casamento? Está perdendo a graça?
- Olha, doutor, se está ou não eu não sei dizer mas que é essa a fase
que estamos vivendo em relação a filhos, etc, isso é mesmo.
- O que quer dizer etecetera?
- Bem, no caso é que estamos transando menos mesmo, é verdade.
- Mas você perdeu o interesse pela sua mulher ou tem atração por
outras?
- Atração a gente sempre tem, né, doutor... Com a oferta hoje em dia...
- Mas você trai a sua mulher?
- Não, isso não. É complicado, dá trabalho... E posso até pegar a
doença. Deixa eu isolar, com licença...
- Então você sente atração pela sua mulher...
- Claro! Ela é muito interessante, não tem dúvida.
- Bem, estamos chegando mais perto em decifrar o enigma da
almofada cor-de-rosa que vem te incomodando... Vamos parar agora.
Continuamos na próxima sessão. Dê-me cá um abraço, como se
dizia antigamente.

O paciente saiu. Voltou para o trabalho , tentou não pensar no assunto, mas volta e meia as novas revelações voltavam à sua mente. Seguiu assim por uns dias.
Pensou em procurar o casaco que ela estava usando no dia em que almoçaram juntos, dois meses atrás, mas achou invasão de privacidade.
Depois reconsiderou e foi procurar o bilhete no bolso do casaco. Não encontrou.
Ponderou que realmente estavam meio hostis um com o outro. Havia uma má vontade no ar. E, se fosse analisar com sinceridade a hostilidade era maior por parte dele.
Ele sempre tentava irritá-la de algum modo. Será que se sentia preso depois de tantos anos? As crianças estavam mesmo chatas. Tanta mulher dando moleza por aí.
Mas a questão não era ele, era ela. Como ela reagia às provocações dele?
Reagia, quase sempre. Ele conseguia irritá-la, o que não é difícil porque as mulheres são facilmente irritáveis. Mas às vezes ela se controlava. Principalmente na rua. Ela bem “lady like”, odiava falta de classe. Disso ele tinha gostado desde o inicio e valorizaria sempre. Pensou em quantas vezes ela parecia se controlar. Ficou emocionado até. Quando ela chegou do trabalho combinaram de almoçar juntos no dia seguinte.
Foram. Quando iam atravessar a rua ele tentou irritá-la olhando para uma mulher vistosa que passava. Puro vicio. Achou a tipinha bem vulgar até mas tinha que irritar a mulher.
Viu que ela puxou o bendito bilhete cor-de-rosa do bolso, leu, sorriu e continuaram.
Agora quem estava grilado era ele. Que p... era aquela?
Não teve coragem de perguntar. O analista estava certo, ele estava fugindo do assunto.
No dia seguinte saiu mais tarde que ela para o trabalho resolvido a achar o tal bilhete, senão no blaser que ela vestira, no lixo, onde pudesse estar.
Foi ao blaser. Achou. Leu. Sentou na cama. Foi como se tomasse um banho de água fria ali mesmo sentado na cama. Sorriu. No bilhete estava escrito : “Lembre-se que este foi o rapaz louco por você com quem você se casou, apaixonada, teve um casal de filhos, formaram uma familia. Com isso não se brinca”. Do lado um coraçãozinho e a rubrica.
Era a cara dela!
CAIXAS QUADRADAS

- Caramba, essa mulher que veio fazer Regressão comigo é uma perua carioca das boas!
Parece ter uns setenta anos e usa esse layout de vinte aninhos, com corpinho supermagro, minisaia, botas (acho que carioca pensa que em São Paulo pode aproveitar pra usar botas!),
a cara recheada de botox, depois de pelo o menos duas plásticas... Como vou aguentar? O que será que essa criatura quer? Qual será o problema dela? Se fôr pra me pedir pra achar a Alma Gêmea dela eu acho que vou ter um treco. Sou espiritualista mas sou humana!... Melhor respirar fundo e atender. Afinal veio do Rio só pra me consultar...
- Olá! Vamos entrar?
-“Essa garota é tão novinha... Será que tem pique pra mim? Meu Deus! Ela deve ter nascido quando eu estava casando... Vamos ver”.
- Então... Daniela. Por que você quis fazer TVP?
- Terapia de Vidas Passadas? Ah, sim. Bem... Me falaram muito bem de você e eu resolvi tentar. Afinal não sou mais tão jovenzinha assim e preciso resolver logo meus problemas, “partir pro abraço”, se é que você me entende...
- Sim, mas o quê te incomoda mais especìficamente?
- Olha, Marcela, pra te ser franca... Vou logo direto ao assunto... Quero encontrar minha Alma Gêmea... Que foi, te asustei? Sim, eu aceito um copo d’água também.
.......
-Posso te fazer uma pergunta, Daniela?
- Gosto que me chamem de Dani.
-Ok, Dani. Você nunca casou? Não acha que já encontrou sua Alma Gêmea, seu parceiro ideal?
- Ora, Marcela, claro que casei. Quatro vezes. Três filhos. Aliás, dois filhos e uma filha. Fora isso já namorei o Rio de Janeiro inteiro (aqui pra nós que ninguém nos ouça) e mais a metade de
São Paulo... Mas não acho que tenha encontrado a minha Alma Gêmea.
- Mas você se apaixonou?
- Diversas vezes... E ainda assim, acho que isso não tem nada a ver com Alma Gêmea, concorda comigo? Aliás, estou te incomodando com meu cigarro porque, sinto muito, mas eu fumo um atrás do outro, não tem jeito...
- Ok quanto ao cigarro mas para relaxar, não é por mim, não vai dar certo... Vamos ter que passar para aquelas poltronas ali e eu vou colocar um CD de música de relaxamento, tudo bem?
- Tudo bem mas você disse que não tinha nada de hipnose...
- Não tem. Só relaxamento. É preciso que você entenda que as respostas não vão vir de mim, vão aflorar de você. É você que tem as respostas pra sua vida, foi você quem viveu outras vidas que estão registradas dentro de você e que só você pode acessar. Eu apenas vou te ajudar, te induzir e te ajudar. Ok?
- Ok. Vamos lá.
.......
- Me diz, Dani, o que você está vendo. Não pensa , sente. Diz logo.
- Caixas quadradas.
- Caixas quadradas. Você está vendo ou só sentiu? Ou foi a primeira coisa que te passou pela cabeça?
- Resposta número três.
- Essas caixas , quantas são?
- São duas.
- Têm cor?
- Não consigo ver.
- Não importa. Consegue sentir de que tamanho seriam essas caixas?
- Posso inventar que são grandes, pode ser imaginação.
- Não corta a energia, Dani, você sabe que tem duas caixas quadradas, não sabe as cores... São grandes.. Quanto grandes? Cabe o quê nelas?
- Numa cabe roupas. Noutra cabe um violino.
- Onde você está ? Essas caixas estão nesta vida de agora, alguma mudança que você fez? Ou ..
- Não são modernas. Não se fazem mais caixas assim. São meio século dezenove... Amarradas com laços enormes. A das roupas com cor- de- rosa, a do violino com amarelo. Eu odeio cor- de- rosa!... Mas estou vendo ou sentindo, sei lá...
- Dani, você não gosta de cor- de- rosa agora, no século vinte e um. Você é uma mulher moderna. Você quer estar sempre na crista da onda, quer estar sempre jovem. Isto é agora. Mas como era no tempo dessas caixas? Você gostava de rosa? Você gostava de música?
- Huum... Parece que eu gostava de rosa sim, rosa forte. Gostava de ouvir música erudita mas não sabia tocar violino. Nunca soube. Agora, então, eu gosto de MPB e Rock.
- Volta pra lá, Dani.Você gostava de música. Quem tocava música?
- Não sei...
- Quem, Dani?
- Daniela. Nesse lugar eu sou Daniela... Estamos saindo do palacete... As caixas estão no salão... Ele ... Ele toca violino... Não sei quem é, não consigo ver o rosto... Eu não tenho nada a ver com século dezenove, dá um tempo!...
- Vamos parar um pouco.
......
- Entenda. Muitas vezes a gente encarna com personalidade oposta à que tinha no passado. Normalmente a gente acessa a encarnação na qual estamos mais interessados. Você foi logo no século dezenove, um palacete, duas caixas, sabe até o que tem dentro. Entenda, Dani. O fato de você ser muito moderna nesta encarnação não quer dizer que tenha sido sempre assim. Pelo contrário. Outros aspectos precisam ser trabalhados , então a personalidade desenvolve características diferentes, muitas vezes opostas.
- Até aí posso aceitar. Mas se esse homem for a minha Alma Gêmea. Que que ele está fazendo no século errado?
- Você é rápida demais. Realmente você não quer perder tempo. Ao que tudo indica você teve vários maridos, vários casos, teve filhos e não sentiu aquele amor pleno que costumamos chamar de amor pela Alma Gêmea. Entendo que você queira experimentar essa sensação e provàvelmente é porque você a conhece muito bem e sabe que é o que dá o maior sentido à vida.
- Mas as mães dizem que não tem amor igual ao materno. Desculpe mas eu não sinto assim. Amo muito meus filhos mas, veja, agora eles estão lá, criados , cuidando da vida deles e eu sòzinha...
- Eu entendo. As mães que me desculpem mas o seu “ feeling” não esta errado não.
Preciso te revelar algo. É que , infelizmente, não são todas as pessoas que encontram sua Alma Gêmea na encarnação que estão vivendo.
- Como? Você está me dizendo que eu me casei quatro vezes, tive vários casos e que nenhum era minha Alma Gêmea e ponto final? “That’s it?” Vou morrer e não vai rolar? Mas então como as pessoas ficam casadas tantos anos?...
- Não estão necessàriamente com suas Almas Gêmeas... É cruel mas é verdade. E podem ser muito felizes e realizadas mas dentro de um certo limite...
- Quê que é isso?!
- É assim. Encontrar a Alma Gêmea em uma determinada encarnação é um privilégio. Às vezes é preciso abrir mão de outros privilégios como dinheiro, por exemplo. Pouca gente abre mão, sabia?
- Peraí. Pra encontrar a Alma Gêmea tem que ser pobre?
- Não. Esse é apenas um privilégio, diga-se de passagem, o mais evoluído de todos. Os dois têm que estar preparados para isso, se não se sentirão tão completos que não farão mais nada na vida além de ficarem ali, se completando. E as pessoas encarnam com um propósito, com uma missão. Elas têm que cumprir sua missão, fazer os seus aprendizados, receber as lições que estão predestinadas para elas.
- E o livre-arbítrio onde fica?
- Fica no dia e hora em que aquela lição será aprendida, pode ser cedo, pode ser tarde. Pode se repetir caso a pessoa nao entenda da primeira vez. Também pode aprender por bem ou por mal. Acredite, sobra bastante livre- arbítrio pras pessoas exercerem.
Quanto à sua busca, que é da sua Alma Gêmea... Se você tem esse apelo tão forte é porque já viveu com ela alguma encarnação, provàvelmente essa do século dezenove.
- Então não vou ter Alma Gêmea nessa encarnação? Vou ter que morrer?
- Nao entendi...Todos vamos morrer, acho. Nao sei se a sua Alma Gêmea vai aparecer pra você nessa encarnação e conviver com você, do jeito que você queria...
- Espera, volta a fita. Você disse, “ todos vamos morrer, acho”. Como “ acha”?
- Isso é um conhecimento que não cabe aqui no trabalho que estamos fazendo. Infelizmente não posso compartilhar com você. Mas você ja deve ter ouvido falar de mundos paralelos.
- Nunca ouvi.
- Bem, vamos continuar.
.........
-Daniela, onde você está?
- Outra vez olhando para as caixas.
- Como você se sente?
- É forte, tenho que voltar o filme um pouco. Primeiro confusa. Depois reconhecendo o chão onde estou pisando...
- Onde você está?
- Numa estrada ladeada por um bosque. Estou entrando por um portão enorme que está sendo aberto pra mim. Vejo o pátio, o lago com o chafariz, o palacete em frente. Passei de confusa à segura. Sei o que estou fazendo, sei para onde estou indo. Subo as escadas. A porta do palacete se abre. Entro no salão. As caixas quadradas estão lá. Duas. Sim, são beges. Uma com roupas dentro, amarrada com fita cor- de- rosa forte e a outra com laço de fita amarelo, a que contém o violino. Viro para a sala e, de costas, sentado em uma poltrona está um homem. Ele usa cartola. Ele se levanta quando eu entro . Vou ver seu rosto... Não vejo. Só sinto uma enorme felicidade. Ele estava esperando por mim para irmos embora. Para algo feliz, talvez uma viagem, não sei.
- A sensação?
- É de felicidade. É de reencontro. É de quem foi se despedir dos arredores e voltou para viajar com a sua Alma Gêmea... Estou cansada agora.
- Vamos parar.
.......
- Marcela, fala sério. Tudo bem, eu vi o que eu vi, eu senti o que eu senti. Eu vou pagar o combinado pelas horas que você perdeu comigo. Mas... Isso pode ser tudo da minha imaginação. Eu estava consciente o tempo todo, posso ter inventado tudo isso tranqüilamente...
- Você acha? Sinto muito mas é só o que posso fazer por você.
.......
-“Engraçado... Com essa confusão na ponte aérea preferi voltar de ônibus para o Rio. Acho que só fiz isso uma vez, quando jovem.
Daniela... Me senti bem, pela primeira vez, como Daniela. Que incrível! Depois de tantos anos... Pra falar a verdade, tantas décadas... Ei... O que é aquilo, aquele bosque... Será que vou dar uma de louca? Vou. Vou sim. Já passei da idade de me preocupar com o ridículo. Vou mandar parar esse ônibus e descer agora, não quero saber.

.......
- Sim. É Marcela, pois não? Sim, eu atendi a Dani há três dias. Ela disse que iria voltar para o Rio no mesmo dia. Não tem registro nas companhias aéreas? Bem... Está tudo tão bagunçado... Ela não tem alguma amiga em São Paulo? Ela telefonou e disse que estava voltanto? ... Mas não chegou?... Não sei o que dizer... Ela foi atendida por mim, sim. Estava normal, sim. Não houve nada. A recepcionista viu ela sair, até pediu um taxi de cooperativa pra ela. Posso lhe fornecer o nome da cooperativa. Um instante.
...... Espero que consiga localizá-la e que esteja tudo bem. Você é a filha dela? Sei. E ela nunca sumiu antes? Bem, então é preciso ter calma porque ela há de aparecer. Por nada. Boa tarde.

“Meu Deus! Afasta de mim esse cálice. Me livra de qualquer resposabilidade nisso daí. É muito raro acontecer. É caso de um em um milhão... É preciso que a pessoa tenha muita vontade e seja muito audaciosa... Como a Dani”.

terça-feira, 17 de maio de 2011

PÃO DE AÇUCAR
Maio, 2011

Resolvi conhecer o Pão de Açucar. Afinal moro no Rio de Janeiro desde que nasci, há vinte e três anos e nunca fui lá. Parece brincadeira! Rafael, enfim foi ao Pão de Açucar!
Hoje, na hora do almoço, no meio do expediente de trabalho, eu fui. Ainda bem que sobrou um pouco dessa miséria de salário que eu ganho mas quem mandou querer ser professor, bem que me avisaram! Meu pai queria que eu fôsse médico mas só de ver sangue fico querendo desmaiar. Minha mãe sempre disse que eu teria que fazer algo que gostasse muito porque trabalhar no que não se gosta é a morte em vida. Na verdade, como acho que tenho alma de artista, queria ser artista plástico. Mas, nas artes, um em mil vence. E se eu aprendesse todas as técnicas e depois os críticos dissessem que eu não era bom? Não quis arriscar. Resolvi estudar letras, português-alemão. Dá pra viver dando aulas e fazendo traduções. Muita gente agora quer aprender é chinês mas , parodiando um amigo, “A vida é muito curta pra aprender a falar chinês”. A lingua alemã é difícil mas tem quem queira aprendê-la e não tem tantos professores como os de inglês e francês. Além disso é a lingua de muitos dos maiores filósofos da humanidade. Fico próximo do meu campo de interesses culturais. Não dá tempo é de pintar nenhum quadro. Aliás não dá tempo nem de pregar um prego pra pendurar um possível quadro na parede. Tenho que estar sempre trabalhando e me aperfeiçoando para valorizar meu diploma.
Na fila pra comprar meu ingresso nos bondinhos tive um pouco de pena da Isa. Isadora, minha namorada. Não quis trazê-la. Queria ficar só. Tem experiências que eu quero passar sòzinho. Não dá pra ter insights preocupado com a Isa, que vai me perguntar as horas, dizer que está com fome, localizar a Lagoa Rodrigo de Freitas... Me deixa. Eu quero sentir tudo sòzinho, ter meus insights, foi o que pensei.
Já no primeiro bondinho, aquelas duas comadres batendo boca porque as duas queriam segurar na mesma pilastra, já que o bondinho balança um pouco. Pelo-o-amor-de-Deus, discutir com estranhos por uma bobagem, num passeio... Foco. Deixa elas pra lá que eu quero curtir a minha experiência.
Ir subindo. Que coisa isso de ir subindo. Sempre achei meio bobagem as pessoas subirem num lugar, igual a cabrito, pra apreciar a paisagem. Pensei que a experiência era meio...vazia. Mas não. Subir é incrível, o ponto de vista vai ampliando. Ter uma visão aérea das coisas é bem bom, amplia a visão, fornece um panorama mais inteiro sobre tudo. Claro que o google map e os jogos me dão isso mas ao vivo é outra coisa. Ainda não tive grana pra viajar de avião. Medo, eu? Da altitude ou do balanço, ou será que essa coisa vai cair? Não, nenhum.
Do morro da Urca olhei tudo. O bairro da Urca, todo quadradinho, certinho, alí. Um bairro inventado, um aterro. Será que a cabeça das pessoas de lá também é quadradinha, certinha, militar como o Forte de São João? Claro que não. Tem todo o tipo de gente em todos os lugares: os certinhos e os desencanados, os bom caráter e os perversos, os honestos e os canalhas. Não esquecer que os canalhas também envelhecem. Mas não vou me ligar no lado difícil da vida. Vou pensar em quantas pessoas comuns, normais, sadias, moram alí e alí são felizes no seu cotidiano. Com certeza é bairro pra quem quer sossego. Prefiro o caos da Tijuca dos dias de hoje, estou acostumado, pra mim não dava. Mas a Urca é bem bonitinha vista daqui.
E fui ver o outro lado. O mar. A amplidão. Mundo, vasto mundo. A água do oceano Atlântico que está aqui em baixo é a mesma que está la nos Estados Unidos e também lá na Europa. Não é a mesma molécula mas é a mesma água, não é? Muito abrangente. Acho que o bairro da Urca é igual a um cachorro, leal, fiel, sempre igual. E o mar é igual a um gato, gato não tem limite, se soltar na janela ele vai. Eu penso o que eu quiser. Muito bom esse ar puro.
Achei tudo limpinho e bem cuidado.
Subi mais. Outro bondinho, para o morro Pão de Açucar. Depois vejo no google a história, porque se chama pão de açucar mas o formato já dá a entender. Doce porquê? Sim, é doce. O ar aqui em cima é doce. Tem brisa não tem vento, muito bom. Nem vem com essa de que brisa é coisa de mulher e vento é coisa de macho. Eu sou macho e gosto de brisa.
Valeu. Senti. Curti. Agora entendi porque as pessoas curtem. A sensação é agradável mesmo. Não sou chegado a esportes radicais. Pra muita gente isso aqui já é uma experiência radical. Minha tia não viria aqui de jeito nenhum! Tenho que trazer a Isa aqui.
Desci. De volta pra realidade. Sou um outro Rafael? Já não mais o mesmo que subiu? Acho que sim. Dei mais um passo, fui mais adiante nessa experiência de ir desembrulhando a vida. Recomendo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Comentário

Sobre o filme francês: Des hommes et des dieux (homens e deuses).
Achei pena ter lido a crítica da revista Veja sobre esse filme porque ela me predispôs a ver um filme chato e com cenas de violência (do tipo ação) e não é nada disso.
O filme é calmo mas nem se pode dizer que é lento. Também não é hermético, au contraire, é bastante claro nos diálogos e narrações. O filme é muito bonito, a fotografia é belíssima o tempo todo. As cenas de violência são mais insinuadas do que mostradas, são pontuais e não causam nervosismo ou repulsa.
É importante saber que se baseia em fatos reais ocorridos na Argélia em 1996, portanto relativamente recentes e que os dois aspectos mais relevantes são o ecumenismo, ou seja, a relação de atendimento dos monges à população local islâmica, levando socorro às populações carentes do mundo sem tentar impor a crença católica e a falta de opção de inúmeras populações do mundo diante da violência em suas terras natais devido às lutas pelo poder; não podem sair (A não ser por perversos esforços de imigração para o primeiro mundo) e nem podem ficar ( Em condições mínimamente aceitáveis de sobrevivência, no meio da violência, sem hipótese de progresso em suas vidas.)
Importante também saber que a ordem trapista cisterciense tem um quarto voto, além dos votos de castidade, pobreza e obediência. É o voto de permanência, que significa que eles não podem sair dos mosteiros em que vivem até a morte a não ser por ordem especial . No caso do filme isso se torna relevante porque eles decidem ficar, não só pelo voto que fizeram mas porque consideram a população local indefesa sem a presença deles. Portanto sair não seria uma solução fácil, o que esvaziaria ou tornaria artificial a proposta primeira do filme, ou seja, porque simplesmente não foram embora?
Tendo posse dessas informações o conteúdo do filme - deixando de lado as considerações políticas e econômicas quanto ao horror da violência, da miséria, pobreza e injustiça social em que boa parte da humanidade tem que sobreviver- se volta para o aspecto da alta espiritualidade que permeia o filme do começo ao fim, mostrando ao público, o que é, em pleno final do séc XX, optar por uma vida quase que anacrônica, nos tempos iniciais da internet que tanto mudou a face do mundo, uma vida vivida em castidade, pobreza e comunitária cumprindo tarefas simples necessárias à sobrevivência, lidando com o alto poder de vibração energética que possui a oração constante e ao mesmo tempo servindo mundanamente ao próximo pelas tarefas de caridade.
Curioso o aspecto exotérico de serem oito os monges, já que o número 8 deitado é o simbolo do infinito. De se observar também que as orações cantadas e não simplesmente faladas geram uma energia mais poderosa a serviço do Bem. Outra referência simbólica que não sei se percebi corretamente, foi quando o monge médico, após um desabafo em que faz um resumo de sua situação, passa a mão por uma pintura realista e leva seu dedo até a chaga de Jesus, onde Ele levou uma flechada. A mesma chaga em que o apóstolo Tomé quis pôr o dedo para acreditar que Jesus tinha realmente ressucitado, ou seja, o monge não estava “acreditando” naquilo que eles estavam passando naquele momento de 1996. Outros simbolismos esotéricos próprios da ICAR, de conhecimento dos monges e dos teólogos eu não saberia explicar, como o fato de rezarem, por vezes,se posicionando em forma de ferradura ou “u” mas acredito que nada seja gratuito nos rituais.
Adorei o filme, por ser calmo, belo, espiritualmente elevado, de fácil entendimento, que conta uma história com muita clareza e sobretudo baseado em fatos reais. Muito bom, nada chato.

terça-feira, 26 de abril de 2011

EMPREGO REMUNERADO



Ele sempre acordava todo sorridente, batia nas ancas da mulher dizendo: acorda, filhinha, vai fazer meu café. Depois você volta pra tua vida mansa.
Sem demora ela colocava o roupão por cima do pijama e aguardava que ele saísse do banheiro para poder ir ao banheiro e direto para a cozinha atender ao pedido de café da manhã.
Assim que ele saía pelo portão, sempre repetindo “vai filhinha, pra tua vida mansa, que eu tenho que trabalhar, sustentar a casa”, lá ia ele para o ponto de ônubus enquanto ela voltava correndo pra dentro para acordar as crianças e levá-las pra escola.
- Acorda Wilson e Wania, vamos que tá na hora.
Mal os meninos se levantavam e ela já estava fazendo suas camas e pondo um pouco de ordem no quarto deles.
Ia até ao banheiro e acabava por ajudar Wania a escovar os dentes porque ela era um pouco preguiçosa à essa hora do dia.
Corria para a área de serviço e pegava os uniformes dos meninos, bem passadinhos à ferro, como só uma mãe caprichosa sabe fazer. Ajudava-os a se vestirem e quando eles sentavam à mesa ela já vinha com o achocolatado e o pão com manteiga prontinhos. Aproveitava para tomar seu café preto com pão e manteiga e já imaginava o que ia fazer pro almoço. Mas agora tinha que se vestir e levá-los à escola, porque eles ainda não tinham idade de pegar ônibus sòzinhos, a área era meio perigosa e o colégio mais perto era aquele mesmo, não tinha jeito.
Após se vestir conferia o material escolar dos dois nas mochilas e lá se iam. O Totó, o cachorro e a Mimi, a gata iam ter que esperar a sua volta para comerem. Mas deu tempo de trocar a água dos canecos deles.
Na porta da escola a professora pediu cinco minutos de conversa com ela enquanto as crianças entravam. Lá vinha coisa! Tá certo, o Wilson não gostava de estudar, rabiscava os cadernos sem capricho mas, tá certo, ela iria passar mais tempo fazendo os deveres com ele porque o ensino fundamental ela tinha, podia ajudar.
Voltou pra casa, deu angú com bofe pro cachorro e pra gata, que não podia dar moleza pra eles. Lavou a louça, fez sua cama com carinho porque, afinal, era onde seu marido dormia. O trabalhador que trazia o pão com o suor do seu rosto enquanto ela levava vida mansa. Que fazer! Saía mais caro arrumar alguém pra cuidar das crianças e da casa. Seu marido sempre disse que com a “baixa escolaridade” dela, não valia a pena procurar emprego. Iam levando. Ainda bem que ela era econômica.
Foi ao supermercado mais próximo,à pé, embora fosse um pouco distante, mas precisava economizar. Escolheu as ofertas do dia para garantir o almoço, a sopa do jantar (comida, de noite, só para o marido) e um bolinho para os meninos na parte da tarde. Gastou o dinheiro do dia certinho, não sobrou um centavo mas já tinha pão para o dia seguinte, era só molhar e esquentar no forno que ficava como saído da padaria.
Enquanto isso Marcelo, seu marido, chegava na loja. Era gerente,o que tinha uma certa importância. Pelo o menos tinha mesa própria, não precisava ficar o dia inteiro de pé, como os vendedores, esperando que os fregueses entrassem na loja em busca de tapetes, roupas de cama, toalhas,etc.
Cumprimentou a todos e avisou à menina do balcão que ia no botequim tomar um cafèzinho e voltava já. Com essa estratégia conseguia ganhar quase uns vinte minutos de tempo de serviço a fim de cumprir suas oito horas diárias obrigatórias. Voltou, foi ao banheiro e aí, sim, sentou-se em sua mesa para começar o dia. Havia dois recados. Um telefonema de sua mãe e um outro do gerente de outra loja. Resolveu ligar para sua mãe primeiro. Mãe é mãe. Ouviu meia hora de abobrinhas que as mães gostam de falar para os filhos casados e distantes e telefonou para o gerente da loja. Este queria mercadoria que estava em falta em sua loja e que sabia que na loja de Marcelo tinha em estoque. Sim, claro, vou mandar entregar aí. Quantas peças? Fechado. Vai já.
Depois de tomar as providências Marcelo lastimou que a loja estivesse com o movimento fraco, mas o Natal vinha aí e as coisas melhorariam, como sempre. Simulou fazer umas contas com umas notas fiscais que estavam em cima de sua mesa, abriu o computador para ver se havia alguma novidade no único programa que os gerentes utilizavam e foi até o estoque conversar com seu Horácio, para ir tocando o barco.
De volta à sua mesa constatou que eram dez e trinta e portanto saiu para tomar outro café no botequim. A loja tinha café na garrafa térmica mas o gerente não se passava por isso, preferia café fresco do botequim.
Enquanto isso Dolores, de volta à casa, fez o almoço, colocou as roupas de molho antes de lavar na máquina, passou toda o roupa do dia e foi varrer a casa, sempre vigiando o fogão. Por três vezes telefonaram para importuná-la. Uma era da Tv à Cabo.Não, não queria, obrigada. Favor não insistir, não vou colocar tv à cabo. Obrigada. O segundo foi engano e o terceiro uma empresa de telefonia celular tentando vender seus serviços. Celular, só o marido tinha, e de cartão.E olhe lá. Não queria, obrigada, não insista, estou ocupada. Correu para as panelas e terminou a faxina. Eram onze horas. Ia regar as plantas e se sentar quando reparou que o cachorro estava vomitando pelos cantos.
- Ai, isso agora, Totó. Eu bem que disse pra esses garotos que ia sobrar pra mim! Quanto mais ela limpava mais ele vomitava. Não teve jeito. Trocou de roupa ràpidamente, colocou a coleira no bicho, pegou a bolsa e foi puxando o coitado pelo meio da rua porque era pesado pra levar no colo. Conseguiu chegar na esquina do segundo quarteirão onde morava o Chico, que era famacêutico aposentado e tinha um filho que estudava veterinária.
- Ô dona Maria, seu Chico, preciso de ajuda. Por sorte estavam em casa. Vieram os dois e ficaram observando o bicho. Seu Chico achou que Totó tinha comido alguma coisa podre no quintal. Ou era falta de vacina? Ele tinha sido vacinado? Não. Não levei, não.
- Isso não pode, dona Dolores, é um perigo.
Chegou o filho do farmacêutico que confirmou o diagnóstico dúbio e ajudou Dolores a levar Totó para casa depois de medicado para enjôo. Era preciso observar mais e levar para vacinar.
Em cima da hora de buscar as crianças no colégio, voltou ali mesmo do portão para a rua. Já no ponto de ônibus ficou encucada se teria deixado alguma panela no fogo ligado. Resolveu entregar pra Deus e acreditar que não teria saído com Totó para a casa de seu Chico sem antes desligar tudo.
Pegou as crianças no colégio, passou na papelaria para comprar cartolina porque a Wania tinha trabalho escolar e seguiram para a casa.
Contou aos meninos que o cachorro estava esquisito e disse aos dois que fossem buscar revistas velhas nas casas dos vizinhos logo depois do almoço para fazerem o trabalho. Wilson não quis ir porque o trabalho não era seu. Está bem.
Almoçaram. O cachorro acalmou. Tomou um cafèzinho, lavou a louça enquanto as crianças viam um pouco de televisão e chamou-os para as obrigações.
-Mas, Wania, você ainda não foi buscar as revistas? Vai logo enquanto eu abro a máquina de costura. Avisa pra Aninha que a blusa dela fica pronta amanhã, que é pra ver se ela vem buscar e me paga. (Não era muito o que ganhava com esse bico mas ajudava nos tecidos para as roupas de Wania que ela mesma fazia, aos domingos, enquanto o marido assistia ao futebol ou dormia).
Sentou com Wilson para ajudá-lo a fazer as tarefas escolares mas era uma agonia. Pràticamente tinha que fazer por ele. Ô menino preguiçoso pra estudar. Mas diziam que todos os meninos eram iguais nisso, então, pra que se preocupar? Era ir levando.
Conseguiu terminar a blusa da Aninha e os deveres dos dois filhos e liberou eles pra brincar na rua.
- Vê se não quebra o braço de novo, menino, que eu não aguento passar os dias em Posto de Saúde!
Eram vinte pras cinco da tarde. Dava tempo de bater um bolo rápido pras crianças. Foi.
Enquanto isso Marcelo tinha terminado sua manhã refazendo, pela sexta vez, as contas das mesmas notas fiscais e revendo a planilha do dia. Foi duro enrolar. O movimento estava mesmo fraco. Ensaiou telefonar para casa para gastar um pouco mais de tempo mas achou que não tinha o que conversar com a mulher já se a vida dela era aquela coisa boba, nada acontecia, nada era importante como quando alguém trabalha fora.
Ao meio dia saiu para almoçar com o gerente da loja do bairro vizinho e voltou às duas da tarde. O gerente-geral já o havia procurado. Retornou ràpidamente o telefonema e ficou de ir à reunião, no dia seguinte, na loja do Centro.
- O que será que vão inventar dessa vez? Que as vendas estão fracas, coisa e tal... Baixar os salários é que não podem. Espero que não haja demissões.
Foi chamado para resolver um problema entre uma freguesa nervosa e um vendedor arrogante. Com jeito conseguiu compor a situação. Não era à toa que era gerente.
Rodou pela loja, conversou daqui e dali e às três e meia foi tomar um lanche retornando as quatro e vinte. Ok. Mais um pouco e fechamos. Eu, pelo o menos, encerro. Oito às cinco é a minha cota há trinta anos, está de bom tamanho.
Por sorte resolveram trocar os tapetes das prateleiras de cima para um local mais visível. Foram precisos uns quatro homens para o serviço. Marcelo arregaçou as mangas e ajudou até o fim. Nada como fazer uma média com os funcionários. E eis que são cinco horas, até amanhã pessoal.
Enquanto o bolo assava Dolores se permitiu tomar seu banho, que nunca tinha hora certa, dependia dos acontecimentos do dia. Assim que terminou chegou a outra dona Maria, uma portuguesa que vivia há cinquenta anos no Brasil, estava viúva, filhos casados e era de dar dó a depressão em que ela se encontrava. Vinha conversar com Dolores.
- Dona Maria, não sou psicóloga. Soube que tem serviço de psicóloga nas Igrejas, a senhora quer que eu leve a senhora lá? Pode ser de mais ajuda do que eu.
- Ó filha, tens me ajudado. Só de me ouvir chorar e me lamentar já me ajudas.
- Sim, vamos conversar mais um pouco mas eu tô achando melhor levar a senhora na Igreja e até mesmo num médico. Só não vou poder ficar o dia inteiro lá no Posto mas eu levo e busco a senhora, tá bem?
Ficou acertado que sim. Dona Maria até elogiou o bolo quando ganhou um pedaço. Coisa difícil era aquela coitada achar qualquer coisa boa, do jeito que estava se sentindo. Mas comeu e foi para a casa, conformada com a sua dor.
Dolores chamou os meninos para comer bolo e tomar banho porque queria tudo em ordem antes da novela das seis, que era o único prazer do qual não abria mão.
No dia seguinte teria que ir ao Banco pagar contas e o IPTU e fazer uma fèzinha na megasena acumulada. Entre o supermercado e o almoço, tinha que dar tempo.
Terminada a novela chegou seu marido em casa na hora precisa das notícias.
- Como foi essa vida mansa hoje, filhinha? O de sempre?
- O de sempre, “trabalhador do Brasil”! Dizia aquilo com orgulho porque era dalí que vinha o salário que, afinal, é o que paga as contas.
Depois de lavar a louça, atender a irmã no telefone, ver um pouco da outra novela, deixar tudo arrumado para o dia seguinte, foi se deitar, enquanto Marcelo desligava a televisão depois de horas na frente da mesma.
- Vamos lá, filhinha, que amanhã é dia de luta!
- É mesmo. Marcelo? Você não acha que eu devia arrumar um emprego?
- Não se mete nisso, Dolores. As coisas aí fora estão difíceis. Só querem gente jovem e bem preparada. Vamos levando.
- É. Vamos levando. Boa noite, meu herói.