quinta-feira, 4 de março de 2010

RECEITA PARA LIDAR COM A ALMA RASGADA

Você que teve a alma rasgada
Entre a adolescência e a juventude
Faça o seguinte:
Segure o tecido da alma
Na parte que se rasgou
E emende essa parte da adolescência
Com a parte da juventude,
Com fios de compaixão.
A outra parte,
A que fica no final da juventude, você costura,
Dalí em diante, ou seja, nesta ruptura,
Com fios de esperança.
Estenda depois o tecido da alma
E jogue água sanitária no período da juventude.
Assim, aquela fase em que você sofreu sem saber porquê,
Lutou sem saber porquê, riu sem saber porquê,
Você desbota. Faça com cuidado, afim de obter um borrão estético.
Da emenda com fios de esperança em diante, você estende,
Com carinho e passa à ferro, com cuidado.
Vá passando o tecido, nas flores alegres, nas flores miúdas e singelas,
E, sem ressentimento, nas flores negras das crises que vieram.
Sinta que o tecido passou de algodão à seda, com alguns espaços em flanelinha,
Para dar aconchego aos dias de frio, quando os filhos pedem para dormir
Na cama dos pais.
Vá até o final do tecido, ao seu momento presente.
Segure o tecido da alma, com carinho, e estenda este final numa janela
Pintada de verde “casa de campo”, com vista para o campo, o céu azul e um riacho.
Deixe este pedaço debruçado na janela para tomar sol e sentir ar puro.
Não se esqueça de recolher o tecido à noite, ou quando chover ou esfriar.
Neste caso coloque-o delicadamente num cesto de vime,
Olhando para as fotos da família. A foto dos filhos dará um imenso prazer à essa alma
Que continua a florir.
Às vezes, de anos em anos, volte a comtemplar o tecido do início: a sua infância bordada
Em ouro sobre azul, com um mar de rosas em baixo. Passe os olhos, com compreensão,
Pelo tecido da adolescência, depois do rasgão, sem se deter muito.
Continue, sem deter o olhar, no borrão da juventude, respingando bolas de tinta cor-de-rosa, para lembrar que você não fez por mal, estava apenas buscando.
Continue a contemplar o tecido e pode se alegrar cada vez que passar por uma parte boa,
Ou muito boa.
Não chore sobre as flores negras sobre seda branca- talvez fôsse necessário para o aprendizado da alma.
Continue, até o momento presente, até o final provisório do tecido, que é
Do que você deve cuidar. Não negligencie.
Segure-o com carinho, colocando-o para tomar sol,
recolhendo quando não estiver favorável.
Assim procedendo você terá sempre
Alma nova, serena e bem cuidada,
Para oferecer ao contato com os outros

UMA COISA MAIS MODERNA

Marina trabalha numa galeria de arte. Ela tem uma colega de trabalho que não sabe viver.
Entra o cliente, olha tudo, faz perguntas. A colega não sabe ser simpática, não é do temperamento dela. Marina não pode dizer nada. Não pode perder o emprego.
Marina mora com sua mãe. Sua mãe está velha e é um saco. Claro que pra ela todo o mundo acima de trinta é velha. Mas sua mãe realmente embarangou. É uma baranga de quarenta e oito anos. Fazer o quê...
O pior são os namorados dela. Cada coisa mais esquisita.
Marina estava no emprego. Entrou um cara na galeria. Era a vez dela atender.. Achou o cara um gato, meio quize anos mais velho do que ela mas, tudo bem, até aí dá pra encarar.
Marina era bem travada mas o cara tinha que ser atendido. Foi.
O cara olhou tudo, fez perguntas. Ela respondeu, tentou prender o cliente:
- Mas, o quê mais exatamente o senhor está procurando?
Ele olhou pra garota pela primeira vez porque achou engraçada a pergunta.
- Estou procurando uma coisa mais... moderna.
- Mais contemporânea, o senhor quer dizer?
Ele achou engraçado, de novo.
- Sim, mas não quero dizer necessàriamente arte abstrata, entende?
Até que o cliente estava sendo simpático. Ela entendeu. Foi até a parte de cima da galeria procurar algo adequado enquanto o cliente esperava lá embaixo.
Deu uma “sacada” no cara, da sacada. Continuou achando ele interessante mas quem era ela? Ele comprando arte e ela uma simples recepcionista com três meses de formação em arte. Só o básico. Só o que sabia era o que tinha na galeria e onde encontrar a tabela com as informações: na gaveta.
Achou um quadro descolado mas desceu pra fazer outra pergunta:
- O senhor tem preferência pelas dimensões?
- Ahnn? Não importa. Traz o que você achar interessante. Eu espero.
Ela subiu correndo e pediu ao rapaz da loja pra descer com o quadro. Era um pouco pesado pra ela. Desembrulhou em frente ao cliente, procurando deixar o quadro no ângulo certo da parede lisa, por trás. Precisava dessa comissão. Sua mãe precisava de remédios e de camisinhas. Se ela não cuidasse da mãe na saúde e nas imprudências, quem cuidaria?
Marina ficou de costas pra parede, segurando o quadro com as pernas. Não era a altura ideal mas o cliente também... O cliente olhava vidrado... Para ela e não para o quadro.
“Caramba, como vou sair dessa? Quanto tempo vai demorar pra ele tirar os olhos de mim e olhar pro quadro? Quanto tempo vai demorar pra eu arrumar um marido, casar e ter filhos ? Quanto tempo vai demorar pra eu me livrar da minha mãe? Quantos anos eu vou ter que estudar de noite pra arrumar um bom emprego? Quando é que esse cara vai parar de olhar pra mim e olhar o quadro?” Arriscou:
- Senhor? Gostou do quadro?
- Ahnn? Sim. Vou levar. Quer dizer, quanto é? Sim, vou levar.
- Ela tratou da venda e de embalar o quadro mas estava super nervosa porque o cara não tirava os olhos dela. “Caramba! Mundo cruel, modernidade de merda! Esse cara tá me deixando super nervosa. Os tipos acham que é só chegar e cantar que as menininhas pobres e carentes dão pra eles de primeira. Aposto que vai me convidar pra sair.
- Sem querer misturar as coisas, você aceita almoçar comigo?
“Não disse?”
- Misturar o quê com o quê?
- Você aceita almoçar comigo, Marina?
- Como o senhor sabe o meu nome?
- Perguntei pra sua colega enquanto você estava lá em cima. E não vou te dizer a frase batida “Senhor está no céu” porque sei que vocês têm ordem de tratar os clientes por “senhor”e “senhora”. Eu conheço o dono da galeria. Aceita?
-O senhor pode passar outro dia? Estou atrapalhada hoje, não consigo nem pensar direito.
- Claro que passo. Tchau, Marina?
Sorriu pra ele. Não quis pensar mais. São todos iguais. Só quer me levar pra cama. Depois casa com menina do “meio social” dele. Tá bom!
Chegou em casa, não viu a mãe. Mas estava bagunçado. Era até meio normal, só ela arrumava. Percorreu os cômodos e achou a mãe, deitada no chão, seminua. Tentou acordá-la. Devia ser mais um porre. Mas não. Ela estava morta.
Chamou a vizinha. Sentou-se. Deixou a apatia tomar conta. Deixou tudo por conta dos outros.
Foi levada para o velório. Não soube quem levou. Não soube quem vestiu a mãe, quem providenciou tudo, quem pagou. Estava “fora do ar”.
Foi levada para perto do caixão. Ainda não sabia do que a mãe tinha morrido. “Não deixou nem um bilhete, porra!...” Lembrou-se da brincadeira que tinha com a mãe. Lembrou-se que a mãe estava no chão de calçinha e soutien. Soutien.
Meteu a mão dentro do soutien da mãe. Peito esquerdo. Lado do coração. Encontrou um bilhete. Mal escrito, mas era pra ela. Ficou com medo de ler. Apertou o bilhete na mão. Olhou para o lado. Perguntou de que a mãe tinha morrido. Do coração? Mas como? De súbito? Nem sempre. A pessoa pode se sentir enjoada primeiro, pode levar um tempo. “Tempo pra achar um pedaço de papel e um lápis, no meio daquela bagunça...” Saiu dalí procurando um canto pra ficar só. Leu o bilhete. “Arrisque-se, Marina!” O ponto de exclamação era um fio cheio de curvas que acabava quase no final do papel mas tinha um ponto no final, pra mostrar bem que era um ponto de exclamação.
Conseguiu chorar.
Um mês se passou. Estava no trabalho. Trabalho distrai a cabeça. Tinha voltado no dia seguinte à morte da mãe. Tirou o bilhete do lado esquerdo do soutien, discretamente, no meio da loja. Não tinha ninguém.
A porta da galeria se abriu. O sininho tocou. Era ele. O Marcos. Já sabia o nome do cara.
Ele disse “meus pêsames”. Depois sorriu.
- Vamos almoçar?
Ela topou.

UNHA ENCRAVADA

Queria sorrir mas não podia.

Tamanho era seu desconforto que precisou cruzar as pernas e esboçar um sorriso amarelo para que os presentes não percebecem o que lhe ia na alma.

Presentes na sala os oito integrantes da família, confraternizavam e discutiam a novidade.

Marilia estava grávida. Após cinco anos de tentativas sua mulher, enfim, engravidara deixando para trás os termometros, as tabelinhas, os cálculos, as idas ao médico, exames sem fim, tentativas de inseminação artificial, o diabo a que tivera que se submeter durante todos esses anos em que fora obrigado a copular na hora certa, nem antes, nem depois.

Diversas vezes pensou em abandonar Marilia mas o pavor que tinha do sogro, sujeito violento, militar empedernido e os arrepios que lhe causavam as intrigas da sogra, faziam-no desistir.

Acordar suando no meio da noite era corriqueiro para ele. Marilia nem percebia.

Ia até a cozinha, bebia água, e se recordava das machadadas que recebia do sogro ou das facadas da sogra, já que estes sonhos se revesavam e se repetiam reiteradamente.

Sonhos interrompidos pelo susto de acordar todo suado e ir até a cosinha para beber água e se recordar.

Tudo se repetia e se repetia. Os apelos de Marilia para a cópula obrigatória, os sonhos com os sogros. Cinco anos que pareciam não ter fim.

Só uma coisa se repetia e lhe dava prazer: O futebol aos domingos com os amigos. Isso era sagrado.

Um dia, sentado no banco dos reservas, tirou a meia e ficou observando uma unha encravada. Um par de cochas grossas ocuparam, em camara lenta, o seu campo visual. Foi, então, que teve a idéia. Aquelas cochas pertenciam ao Thiago, sujeito boa pinta, galinha até debaixo d’água, parecido com ele, até. Não no comportamento mas no fato de ser boa pinta, alto, cabelos castanhos e um bom sujeito, afinal.

Fez a proposta indecente. Thiago custou a acreditar e mais ainda em aceitar. Mas ao final se rendeu já que Marilia era gostosa, seu amigo estava cansado de transar com hora marcada e...um filho para o casal seria uma boa ação.

O duro é que Marilia teria que ser cantada, seduzida. Ela jamais aceitaria uma proposta fria de seu próprio marido de ter um filho com ele para que resolvessem logo o problema.

E a coisa aconteceu. Para seu desgosto Thiago não tivera muita dificuldade para levar sua mulher para a cama.

No inicio lhe pareceu chocante mas, afinal, tinha sido sua a idéia e agora, com a família ali reunida só lhe restava comemorar.

Os sonhos tinham se alterado. Ultimamente acordava suado e assustado e ia para a cozinha beber água e se recordar da visão de Marilia, sorrindo e lhe dando machadadas ou então era Thiago que lhe sorria e esfaqueava, sonhos revesados e reiterados. Suportaria. O que fazer?

Ao ser confirmada a gravidez de Marilia diante dos familiares sorridentes, com copos estendidos na mão, sugerindo nomes, perguntando por Thiago, o futuro padrinho ausente, ele teve vontade de tirar a meia do pé e observar sua unha, quando o sogro lhe dirigiu a pergunta:

-Que nome vai ter o menino, afinal? Responda!

-UNHA ENCRAVADA, gritou, para espanto de todos.

-UNHA ENCRAVADA DE MELLO E DANTAS, repetiu, completando com o sobrenome enquanto se levantava, dirigindo-se para a porta e para seu carro, que o levaria diretamente a um cabaret com muitas bebidas e mulheres fáceis e uma noitada de transas sem hora pra começar nem pra terminar.