terça-feira, 26 de abril de 2011

EMPREGO REMUNERADO



Ele sempre acordava todo sorridente, batia nas ancas da mulher dizendo: acorda, filhinha, vai fazer meu café. Depois você volta pra tua vida mansa.
Sem demora ela colocava o roupão por cima do pijama e aguardava que ele saísse do banheiro para poder ir ao banheiro e direto para a cozinha atender ao pedido de café da manhã.
Assim que ele saía pelo portão, sempre repetindo “vai filhinha, pra tua vida mansa, que eu tenho que trabalhar, sustentar a casa”, lá ia ele para o ponto de ônubus enquanto ela voltava correndo pra dentro para acordar as crianças e levá-las pra escola.
- Acorda Wilson e Wania, vamos que tá na hora.
Mal os meninos se levantavam e ela já estava fazendo suas camas e pondo um pouco de ordem no quarto deles.
Ia até ao banheiro e acabava por ajudar Wania a escovar os dentes porque ela era um pouco preguiçosa à essa hora do dia.
Corria para a área de serviço e pegava os uniformes dos meninos, bem passadinhos à ferro, como só uma mãe caprichosa sabe fazer. Ajudava-os a se vestirem e quando eles sentavam à mesa ela já vinha com o achocolatado e o pão com manteiga prontinhos. Aproveitava para tomar seu café preto com pão e manteiga e já imaginava o que ia fazer pro almoço. Mas agora tinha que se vestir e levá-los à escola, porque eles ainda não tinham idade de pegar ônibus sòzinhos, a área era meio perigosa e o colégio mais perto era aquele mesmo, não tinha jeito.
Após se vestir conferia o material escolar dos dois nas mochilas e lá se iam. O Totó, o cachorro e a Mimi, a gata iam ter que esperar a sua volta para comerem. Mas deu tempo de trocar a água dos canecos deles.
Na porta da escola a professora pediu cinco minutos de conversa com ela enquanto as crianças entravam. Lá vinha coisa! Tá certo, o Wilson não gostava de estudar, rabiscava os cadernos sem capricho mas, tá certo, ela iria passar mais tempo fazendo os deveres com ele porque o ensino fundamental ela tinha, podia ajudar.
Voltou pra casa, deu angú com bofe pro cachorro e pra gata, que não podia dar moleza pra eles. Lavou a louça, fez sua cama com carinho porque, afinal, era onde seu marido dormia. O trabalhador que trazia o pão com o suor do seu rosto enquanto ela levava vida mansa. Que fazer! Saía mais caro arrumar alguém pra cuidar das crianças e da casa. Seu marido sempre disse que com a “baixa escolaridade” dela, não valia a pena procurar emprego. Iam levando. Ainda bem que ela era econômica.
Foi ao supermercado mais próximo,à pé, embora fosse um pouco distante, mas precisava economizar. Escolheu as ofertas do dia para garantir o almoço, a sopa do jantar (comida, de noite, só para o marido) e um bolinho para os meninos na parte da tarde. Gastou o dinheiro do dia certinho, não sobrou um centavo mas já tinha pão para o dia seguinte, era só molhar e esquentar no forno que ficava como saído da padaria.
Enquanto isso Marcelo, seu marido, chegava na loja. Era gerente,o que tinha uma certa importância. Pelo o menos tinha mesa própria, não precisava ficar o dia inteiro de pé, como os vendedores, esperando que os fregueses entrassem na loja em busca de tapetes, roupas de cama, toalhas,etc.
Cumprimentou a todos e avisou à menina do balcão que ia no botequim tomar um cafèzinho e voltava já. Com essa estratégia conseguia ganhar quase uns vinte minutos de tempo de serviço a fim de cumprir suas oito horas diárias obrigatórias. Voltou, foi ao banheiro e aí, sim, sentou-se em sua mesa para começar o dia. Havia dois recados. Um telefonema de sua mãe e um outro do gerente de outra loja. Resolveu ligar para sua mãe primeiro. Mãe é mãe. Ouviu meia hora de abobrinhas que as mães gostam de falar para os filhos casados e distantes e telefonou para o gerente da loja. Este queria mercadoria que estava em falta em sua loja e que sabia que na loja de Marcelo tinha em estoque. Sim, claro, vou mandar entregar aí. Quantas peças? Fechado. Vai já.
Depois de tomar as providências Marcelo lastimou que a loja estivesse com o movimento fraco, mas o Natal vinha aí e as coisas melhorariam, como sempre. Simulou fazer umas contas com umas notas fiscais que estavam em cima de sua mesa, abriu o computador para ver se havia alguma novidade no único programa que os gerentes utilizavam e foi até o estoque conversar com seu Horácio, para ir tocando o barco.
De volta à sua mesa constatou que eram dez e trinta e portanto saiu para tomar outro café no botequim. A loja tinha café na garrafa térmica mas o gerente não se passava por isso, preferia café fresco do botequim.
Enquanto isso Dolores, de volta à casa, fez o almoço, colocou as roupas de molho antes de lavar na máquina, passou toda o roupa do dia e foi varrer a casa, sempre vigiando o fogão. Por três vezes telefonaram para importuná-la. Uma era da Tv à Cabo.Não, não queria, obrigada. Favor não insistir, não vou colocar tv à cabo. Obrigada. O segundo foi engano e o terceiro uma empresa de telefonia celular tentando vender seus serviços. Celular, só o marido tinha, e de cartão.E olhe lá. Não queria, obrigada, não insista, estou ocupada. Correu para as panelas e terminou a faxina. Eram onze horas. Ia regar as plantas e se sentar quando reparou que o cachorro estava vomitando pelos cantos.
- Ai, isso agora, Totó. Eu bem que disse pra esses garotos que ia sobrar pra mim! Quanto mais ela limpava mais ele vomitava. Não teve jeito. Trocou de roupa ràpidamente, colocou a coleira no bicho, pegou a bolsa e foi puxando o coitado pelo meio da rua porque era pesado pra levar no colo. Conseguiu chegar na esquina do segundo quarteirão onde morava o Chico, que era famacêutico aposentado e tinha um filho que estudava veterinária.
- Ô dona Maria, seu Chico, preciso de ajuda. Por sorte estavam em casa. Vieram os dois e ficaram observando o bicho. Seu Chico achou que Totó tinha comido alguma coisa podre no quintal. Ou era falta de vacina? Ele tinha sido vacinado? Não. Não levei, não.
- Isso não pode, dona Dolores, é um perigo.
Chegou o filho do farmacêutico que confirmou o diagnóstico dúbio e ajudou Dolores a levar Totó para casa depois de medicado para enjôo. Era preciso observar mais e levar para vacinar.
Em cima da hora de buscar as crianças no colégio, voltou ali mesmo do portão para a rua. Já no ponto de ônibus ficou encucada se teria deixado alguma panela no fogo ligado. Resolveu entregar pra Deus e acreditar que não teria saído com Totó para a casa de seu Chico sem antes desligar tudo.
Pegou as crianças no colégio, passou na papelaria para comprar cartolina porque a Wania tinha trabalho escolar e seguiram para a casa.
Contou aos meninos que o cachorro estava esquisito e disse aos dois que fossem buscar revistas velhas nas casas dos vizinhos logo depois do almoço para fazerem o trabalho. Wilson não quis ir porque o trabalho não era seu. Está bem.
Almoçaram. O cachorro acalmou. Tomou um cafèzinho, lavou a louça enquanto as crianças viam um pouco de televisão e chamou-os para as obrigações.
-Mas, Wania, você ainda não foi buscar as revistas? Vai logo enquanto eu abro a máquina de costura. Avisa pra Aninha que a blusa dela fica pronta amanhã, que é pra ver se ela vem buscar e me paga. (Não era muito o que ganhava com esse bico mas ajudava nos tecidos para as roupas de Wania que ela mesma fazia, aos domingos, enquanto o marido assistia ao futebol ou dormia).
Sentou com Wilson para ajudá-lo a fazer as tarefas escolares mas era uma agonia. Pràticamente tinha que fazer por ele. Ô menino preguiçoso pra estudar. Mas diziam que todos os meninos eram iguais nisso, então, pra que se preocupar? Era ir levando.
Conseguiu terminar a blusa da Aninha e os deveres dos dois filhos e liberou eles pra brincar na rua.
- Vê se não quebra o braço de novo, menino, que eu não aguento passar os dias em Posto de Saúde!
Eram vinte pras cinco da tarde. Dava tempo de bater um bolo rápido pras crianças. Foi.
Enquanto isso Marcelo tinha terminado sua manhã refazendo, pela sexta vez, as contas das mesmas notas fiscais e revendo a planilha do dia. Foi duro enrolar. O movimento estava mesmo fraco. Ensaiou telefonar para casa para gastar um pouco mais de tempo mas achou que não tinha o que conversar com a mulher já se a vida dela era aquela coisa boba, nada acontecia, nada era importante como quando alguém trabalha fora.
Ao meio dia saiu para almoçar com o gerente da loja do bairro vizinho e voltou às duas da tarde. O gerente-geral já o havia procurado. Retornou ràpidamente o telefonema e ficou de ir à reunião, no dia seguinte, na loja do Centro.
- O que será que vão inventar dessa vez? Que as vendas estão fracas, coisa e tal... Baixar os salários é que não podem. Espero que não haja demissões.
Foi chamado para resolver um problema entre uma freguesa nervosa e um vendedor arrogante. Com jeito conseguiu compor a situação. Não era à toa que era gerente.
Rodou pela loja, conversou daqui e dali e às três e meia foi tomar um lanche retornando as quatro e vinte. Ok. Mais um pouco e fechamos. Eu, pelo o menos, encerro. Oito às cinco é a minha cota há trinta anos, está de bom tamanho.
Por sorte resolveram trocar os tapetes das prateleiras de cima para um local mais visível. Foram precisos uns quatro homens para o serviço. Marcelo arregaçou as mangas e ajudou até o fim. Nada como fazer uma média com os funcionários. E eis que são cinco horas, até amanhã pessoal.
Enquanto o bolo assava Dolores se permitiu tomar seu banho, que nunca tinha hora certa, dependia dos acontecimentos do dia. Assim que terminou chegou a outra dona Maria, uma portuguesa que vivia há cinquenta anos no Brasil, estava viúva, filhos casados e era de dar dó a depressão em que ela se encontrava. Vinha conversar com Dolores.
- Dona Maria, não sou psicóloga. Soube que tem serviço de psicóloga nas Igrejas, a senhora quer que eu leve a senhora lá? Pode ser de mais ajuda do que eu.
- Ó filha, tens me ajudado. Só de me ouvir chorar e me lamentar já me ajudas.
- Sim, vamos conversar mais um pouco mas eu tô achando melhor levar a senhora na Igreja e até mesmo num médico. Só não vou poder ficar o dia inteiro lá no Posto mas eu levo e busco a senhora, tá bem?
Ficou acertado que sim. Dona Maria até elogiou o bolo quando ganhou um pedaço. Coisa difícil era aquela coitada achar qualquer coisa boa, do jeito que estava se sentindo. Mas comeu e foi para a casa, conformada com a sua dor.
Dolores chamou os meninos para comer bolo e tomar banho porque queria tudo em ordem antes da novela das seis, que era o único prazer do qual não abria mão.
No dia seguinte teria que ir ao Banco pagar contas e o IPTU e fazer uma fèzinha na megasena acumulada. Entre o supermercado e o almoço, tinha que dar tempo.
Terminada a novela chegou seu marido em casa na hora precisa das notícias.
- Como foi essa vida mansa hoje, filhinha? O de sempre?
- O de sempre, “trabalhador do Brasil”! Dizia aquilo com orgulho porque era dalí que vinha o salário que, afinal, é o que paga as contas.
Depois de lavar a louça, atender a irmã no telefone, ver um pouco da outra novela, deixar tudo arrumado para o dia seguinte, foi se deitar, enquanto Marcelo desligava a televisão depois de horas na frente da mesma.
- Vamos lá, filhinha, que amanhã é dia de luta!
- É mesmo. Marcelo? Você não acha que eu devia arrumar um emprego?
- Não se mete nisso, Dolores. As coisas aí fora estão difíceis. Só querem gente jovem e bem preparada. Vamos levando.
- É. Vamos levando. Boa noite, meu herói.

Um comentário:

  1. Adorei, Irene! É o retrato fiel da maioria das mulheres brasileiras. Ainda bem que eu fiz análise! Rsrsrsrsrsrsrssssssss...

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