sábado, 25 de junho de 2011

EM OBRAS

A capela do colégio estava em obras. Eu, irmã Marcelina, tinha que seguir os passos apressados da irmã superiora, Gertrudes, que comandava o colégio com rigor e eficiência, características de sua pessoa.
Havia ocorrido uma infiltração na capela e as obras eram necessárias mas não ficariam prontas para aquele início do ano letivo, março de 1969. Ao contrário, parecia que se tornariam as obras de Sta. Engrácia, intermináveis, já que estava sendo difícil contratar uma equipe que comparecesse todos os dias, com regularidade. A mão de obra na cidade serrana do Rio de Janeiro era precária e sem especialização embora os operários tivessem muito boa vontade, a meu ver. A placa EM OBRAS estava fixada na grama, bem em frente à capela e irmã Gertrudes comparecia diàriamente ao local para falar com o mestre de obras.
- Senhor Manuel, porquê o senhor me chamou hoje. Qual a novidade?
-Madre, a infiltração é maior do que esperávamos. Vamos ter que retirar todas as pastilhas do altar e recolocar depois do conserto do telhado. Queria mostrar para a senhora as que achei no comércio, na cor verde.
- Verde? Como o céu pode ser representado na cor verde, seu Manuel? De modo algum. Teremos que achar pastilhas na cor azul. Nem que tenham que vir da capital . Então vão ter que quebrar tudo?
- Seu Manuel assentiu.
- Muito cuidado com as volutas das colunas e com o trabalho de marchetaria que temos na capela porque o senhor sabe que, hoje em dia, é difícil achar quem faça.
- Seu Manuel concordou novamente e irmã Gertrudes virou as costas vindo a comentar comigo: Desde a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, no último mandato do presidente Jucelino Kubitschek que o nosso estado empobreceu em tudo. Este presidente tem o Plano de metas de “Cinquenta anos em cinco.”Humm. Qual a pressa? Hoje em dia nada se faz com pausa. Depois da inauguração da Tv Tupi Rio em 1951,(Penso que em janeiro, vou ver em que dia), que as pessoas não conversam mais, querem ver televisão. O que mais virá para tomar o tempo das pessoas ? Com o governo militar de 31 de março de 1964, ficou mais difícil achar pessoas especializadas para as obras. Parece que todos estão na política, a favor ou contra. A moda na arquitetura, por influência de Brasília também mudou muito. Quem se importa com o barroco ou mesmo o estilo renascentista tão comum na capital?! Agora tudo são linhas retas, sem floreados e ornamentos. Quero preservar os enfeites da capela, espero que não quebrem tudo para consertar as infiltrações. Já mandei retirar os santos com o máximo de cuidado e levá-los para meu escritório. Viu se providenciaram isso?
- Vou ver agora mesmo, madre. Com sua licença.
- Madre Gertrudes gostava de datas completas, de precisão. Além de dirigir o colégio também dava as aulas de catecismo. Algumas alunas, em dificuldade, vinham a mim, para desabafar e eu, em nome de Jesus as ajudava no que me era espiritualmente permitido.
Uma das alunas chamava-se Verônica. Seu pai, desgostoso com a mudança da capital para Brasília, pediu demissão do emprego e mudou-se para nossa cidade. Verônica e a irmã Marcela estavam agora no último ano do curso secundário.
Marcela não costumava pedir conselhos. Mas Verônica recorria muito à mim.
Foi como fiquei sabendo que seu pai era um tanto rude com a mãe. Esta, segundo me disse Verônica, procurava seguir o conselho que São Vicente Ferrer, o santo, deu à uma mulher casada para ter harmonia com o marido briguento: “Quando ele chegar do trabalho encha a boca de água e fique assim com a boca cheia por mais tempo que puder”. A mãe de Verônica, nos momentos críticos, dirigia-se prontamente para a cozinha e bebia um copo de água enquanto pedia a Deus para livrá-la do pecado da ira, o único dos sete que a incomodava. Depois confessava, comungava para se renovar e assim seguia.
Eu não tinha muito o que dizer à Verônica quanto à este problema familiar a não ser lendo trechos da Bíblia: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim , e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo que até sete mas até setenta vezes sete.” Ou, então : “E quem não toma a sua cruz e não segue após mim, não é digno de mim.”
O ano letivo iniciou e assim também as dificuldades de Verônica nas aulas de catecismo. Ela me revelou que contou para irmã Gertrudes, em voz alta, durante uma aula de catecismo, que sua mãe teria interrompido seu pai para fazer uma pergunta corriqueira sobre o jantar e ele, que estava ouvindo música, sentado em sua poltrona, respondeu de forma hostil: - Música erudita e coito não se interrompe!
Verônica quis saber o que era coito e porquê não se podia interromper. Madre Gerturdes, segundo eu soube, ficou vermelha, num misto de pudor e rancor, respondendo à menina : - Isto não é para a sua idade! Esqueça!” Quando soube pedi à Deus misericórdia porque sentia uma forte vontade de rir mas não podia por todas as razões , fossem morais, disciplinares e especialmente religiosas.Recomendei à Verônica que visse o significado da palavra no dicionário e não se preocupasse mais com o assunto porque ainda era cedo para ela pensar nisso. O problema era que todas as aulas de irmã Gertrudes seguiam essa linha. As respostas eram definitivas e sem explicação com uma resposta padrão muito utilizada: Isto é dogma, não se questiona. Aprenda e pronto.
Pude perceber, naquela época que não só Verônica como também outras meninas estavam prestes a sair da escola, pois terminariam o curso em dezembro e estavam se afastando da religião. Isto, a meu ver era grave porque o mundo estava mudando muito e rápido e estas meninas ficariam sem o apoio de um grande mestre. Verônica também estava EM OBRAS, tudo precisava ser derrubado e reconstruído e eu precisava ajudar.
Quando Verônica me questionou sobre a virgindade de Maria lembrei-me que sua irmã, Marcela, talvez tivesse algo a lhe dizer. Marcela já havia se afastado de nós mas era uma boa pessoa que trilhava outros caminhos. Verônica tinha espirito independente mas Marcela, mais que isto, era livre.
- Ooooooooommmmmmm! Oooooooooommmmmmm!
Foi o que ouviu Verônica quando entrou no quarto e sua irmã estava sentada na cama, de olhos fechados, vestindo uma bata indiana e repetindo este som. Um incenso estava queimando. Ela não tinha certeza se podia interromper por isso aguardou um pouco.
Como este ritual lhe pareceu interminável, ela perguntou a Marcela se poderia falar. Marcela abriu os olhos lentamente, sentou-se em posição comum e se prontificou a ouvir a irmã.
- Marcela. Essa questão de Maria ser virgem e algumas outras quetões me incomodam. Batem de frente com a minha racionalidade. Mas eu não sou como você, não poderia viver sem os Santos.
- Verônica, acredite no que quiser. A crença é uma exigência interna, é pessoal.
- Mas eu quero continuar sendo Católica. É a minha formação.
-Está bem. O que sei é que existe uma corrente que diz que houve um erro de tradução da Bíblia. Que a Bíblia dizia “jovem”Maria e isto foi traduzido por “virgem” Maria. Além disso o Messias deveria vir da casa de David e portanto ser descendente de José, que inclusive teve outros filhos com Maria. Este filho, era especial, nasceu para ser um mestre, um avatar. Como Buda, Krishna e outros. Se eu fôsse você não me preocuparia tanto com a “mitologia católica” ou os dogmas. Tome algumas coisas de forma simbólica e não literal e, principalmente, siga o seu mestre, seja Ele quem fôr. Agora me dá licença porque eu quero voltar para a minha meditação.
- Mas só mais uma coisa: Se eu não acredito em tudo da Católica não posso ser Católica!
- Acredite no que você quiser. Seja o que você quiser.
Verônica deixou o quarto e trouxe suas outras dúvidas para mim.
O inverno já havia terminado mas a primavera na serra ainda era bem fria. Estávamos quase no final do ano letivo. Verônica ainda não havia se decidido quanto à Faculdade que iria cursar e as opções na região eram poucas. Já sua vida afetiva estava tomando um rumo porque o namoro com Jonas iria completar seis meses. Mas ela não permitia avanços íntimos. Precisava pensar mais no assunto. Tinha uma noção muito vaga do seu futuro.
Estávamos quase no Natal quando Verônica me perguntou sobre a Páscoa. Não tinha dúvidas sobre o Natal.
- Irmã Marcelina, como Cristo morreu na cruz para nos salvar, nos livrar dos pecados? Isto nos autoriza a pecar?
- Não, Verônica, Ele disse :” Não necessitam de médicos os sãos, mas, sim, os doentes.” Ele ampara os pecadores arrependidos. É como se Ele dissesse: Se caires, levanta, Eu estou aqui. Aliás isto está dito de várias formas no Evangelho, você precisa reler.
- Mas minha irmã fala muito sobre o desapego e sobre a necessidade de convivermos com a eterna mudança, renovação. Onde temos isso?
- Verônica, “Olhai paraos lirios do campo”. Você precisa reler o Novo Testamento. A Páscoa Católica simboliza a renovação, o início de uma nova etapa com a Ressureição de Cristo. Quer maior desapego do que morrer na cruz, doar sua vida, quando poderia ter fujido? E orientou seus discipulos para continuarem pregando Sua palavra, o que Ele ensinou, em nome de Deus.
- Só mais uma coisa. E a questão da reencarnação? Porquê só temos uma vida, porquê só temos uma chance? Não é pouco para evoluirmos? Isso já é coisa da minha irmã... Que, aliás, juntou dinheiro, foi para o Festival de Woodstock e não voltou mais.
Abri a minha Bíblia e li: E passando Jesus viu um homem cego de nascença. E os seus discipulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.
Recomendei à Verônica que continuasse lendo até a cura do cego na esperança que ela entendesse que o processo de evolução espiritual, para mim, e talvez para ela, não necessitasse de mais do que uma vida.
- Verônica, o ano letivo está terminando, não nos veremos com tanta frequência. Lembre-se de que, se você quiser aceitar, Jesus disse: “E eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação do século. Amén.”
- Madre, quero fazer a primeira comunhão ainda este ano.
Verônica se foi e eu me dirigi até a capela onde, finalmente, eu tinha sido autorizada por madre Gertrudes a retirar a placa EM OBRAS. E o fiz com gosto, porque também Verônica estava pronta para uma nova etapa.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

COOPERAÇÃO E COMPETIÇÃO
24.06.2011
“Não concordo com o que você diz mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-lo.”Voltaire.
A competição tem seus defensores. Acham que estimula as pessoas a darem o seu melhor, a se aperfeiçoarem por comparação a seus competidores; acham estimulante; acham que extravasa a agressividade latente e normal que as pessoas têm, que está ligada ao instinto primitivo de sobrevivência. Já ouvi dizer que o futebol é uma metáfora da guerra, ou seja, se os homens não torcessem por seus times, não extravasassem sua ira, sua agressividade vencendo junto com os gols do seu time poderiam estar se matando em guerras.
Não questiono a existência da agressividade na personalidade do ser humano. Generalizando em graus diria que existem: os agressivos, os de postura firme e os mansos. Como considero sábio o adágio: In medium est virtus, no meio está a virtude, acho ideal ter postura firme sem ser agressivo (o que é muito nocivo) nem ser manso ( o que pode gerar distorções como taras e outros desvios de comportamento e, em pessoas de melhor orientação ética e moral pode gerar doenças, somatizações). Para mim, a agressividade bem resolvida revela uma pessoa equilibrada que não se comporta com hostilidade nem é submissa (seja com sinceridade ou por dissimulação).
A pessoa equilibrada, que está bem consigo mesma é pessoa bem resolvida, capaz de ser uma admiradora. Por oposição, a pessoa mal resolvida é capaz de ser uma invejosa.
Pessoa bem resolvida: admiradora.
Pessoa mal resolvida: invejosa.
Ressalve-se que todos nós passamos por bons e maus momentos na vida, ou seja, existem épocas em que estamos mais bem resolvidos e outras épocas que não estamos tão bem. Do mesmo modo existem setores da vida em que nos consideramos mais bem resolvidos e outros não ou não tão bem resolvidos. Há uma dinâmica, nada é engessado.
O que é um admirador? É aquele que aplaude o sucesso do outro, é aquele que se alegra com a alegria do amigo, é aquele que aceita que alguém seja melhor do que ele em algum ou muitos aspectos e não se sente diminuido pelo valor do outro.
O que é um invejoso? É aquele que se sente diminuido diante do outro. Se sente ofuscado diante do brilho do outro. E pode prejudicar ou magoar a pessoa alvo de sua admiração.
Ex.: A atriz americana Elizabeth Taylor, quando estava em má fase, em torno dos 50 anos, havia engordado e não tinha feito plástica, ouviu de uma “fã”: Eu sempre quis ser igual a você, agora consegui. Ou seja, agora que você, ícone de beleza, está uma matrona e eu também, estamos iguais. Isto é o quê senão inveja?
Lembremos que as pessoas podem ser frias (Além de frias, psicopatas) e gradualmente sensíveis e até ultrasensíveis. Evidente que uma pessoa fria se magoa menos fàcilmente do que uma pessoa sensivel.
O que o invejado pode fazer? 1. Diminuir o seu brilho para não ofuscar os outros ( Até que ponto este caminho beneficia a humanidade?) 2. Se afastar do invejoso que lhe quer magoar ou prejudicar.
O que o invejoso pode fazer? 1. Entender que se ele se compara ao melhor deve se comparar também ao pior. Então encontrará um caminho de cura porque sempre tem alguém em pior situação do que nós. 2. Lembrar que aquela pessoa, a invejada, que está lhe causando senso de diminuição não deve ser invejada, porque nunca se sabe o que aguarda aquela pessoa na próxima esquina e algo de muito ruim pode potencialmente acontecer ao invejado ( a qualquer um) e o invejoso verá que não gostaria de modo algum de estar na pele do invejado no momento difícil, portanto não vale à pena invejar.
Sempre alguém será melhor do que nós em algum métier ou em algum momento e isto não deve nos fazer infelizes porque nós não temos que nos comparar, nós temos que nos realizarmos e encontrar a nossa e própria versão de felicidade.
Não vejo necessidade de me estender quanto às vantagens para todos da Cooperação que a todos eleva e a todos beneficia.
Autora: Irene D. Rodrigues

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O combinado não sai caro
20 de junho, 2011

Bruno e Mariana desceram para a piscina do condomínio. Era domingo e tinha bastante gente mas nunca ficava tumultuado porque muitos moradores iam para a praia. O ambiente estava silencioso. A não ser por Bruno que logo que se acomodou na cadeira pegou o celular e telefonou para seu melhor amigo, Gabriel.
Mariana ficou quieta por quase uma hora, tomando sol enquanto Bruno conversava com o amigo.
Teve tempo de pensar em seu casamento, há um ano atrás. Tudo aconteceu melhor do que ela havia imaginado. A igreja estava repleta de lirios brancos, puseram um tapete vermelho, como ela pediu. A igreja, barroca, já tinha diversos detalhes decorativos folheados a ouro, nas capelas, no altar, no teto e também nos santos que ficavam em nichos nos cantos ao longo da pequena nave central. Mariana achava que ouro e vermelho eram as cores que mais representavam o luxo. Tudo o que tinha visto, até agora, nas revistas, nas festas, em algumas viagens deixaram isto bem claro para ela. E no dia em que ela era a protagonista queria tudo em ouro e vermelho, um luxo. Seu vestido ficou romântico e contemporâneo ao mesmo tempo, meio Grace Kelly com Lady Gaga – o costureiro pegou o espírito da coisa. A festa também foi perfeita, Bruno não estava falando no celular.
Lembrou dos votos que os dois fizeram de “amar e respeitar”. Nem era católica. Foi batizada, fez a primeira comunhão e casou na Igreja, como a maioria faz, mais por uma questão de tradição, para usar o vestido de noiva, o véu e a grinalda, ser a princesa do dia diante de todos, o sonho social romântico. Nunca ia à missa e não pensava em Deus. Só pensava que durante seu casamento com Bruno este quase sempre empunhava um celular ao lado dela. Isto era amor e respeito? Ele estava sempre com outra pessoa enquanto seus corpos eram vizinhos. Procurou pensar em outras coisas. Era casada há muito pouco tempo para se dar por infeliz.
Quando Gabriel desligou o celular após falar com seu amigo Bruno, no silêncio do metrô em que todos ouviam sua conversa, calados, sua meta era encontrar os amigos no cinema.Porém, quando viu já estava na Tijuca e teve que voltar tudo. Chegou muito atrasado. Resolveu comprar ingresso para a sessão seguinte porque queria ver Piratas do Caribe 4 mesmo que sòzinho. Saiu caro seu atraso.
Quando o filme Piratas do Caribe terminou Renata, percebendo que Gabriel não tinha se juntado à turma, telefonou para ele mas este não atendeu. Renata foi, então, com a turma para uma pizzaria e insistiu algumas vezes nos telefonemas. Todos atenderam algumas ligações em seus celulares enquanto comiam pizza fisicamente juntos. Quando terminaram de comer, Renata, que estava levemente interessada em Gabriel, quis voltar para o cinema, que era perto para ver se o encontrava e se separou da turma. Procurou Gabriel no café, na livraria, ligou várias vezes e o celular de Gabriel sempre dava fora de área. Viu que, com isto, tinha se atrasado para a formatura do primo e iria ter que tomar um taxi, não dava tempo de ir de metrô ou ônibus. Este desencontro, para sua mesada, lhe custou caro. Conformou-se e fez sinal para um taxi.
O motorista foi bem até Copacabana, antes do celular dele tocar. Renata foi ficando cada vez mais irritada porque o homem só falava abobrinhas com a esposa, parecia esposa, sobre como cortar a carne em bifes e outras bobagens, enquanto dirigia. Para Renata ela estava pagando a corrida e o profissional estava pondo a vida dela em risco porque estava se distraindo na direção enquanto conversava com a mulher. Meu bem pra lá, meu bem pra cá e Renata cada vez mais irritada, porém tímida demais para reclamar. Ficou com medo de que o motorista ficasse agressivo, estivesse armado ou no mínimo a pusesse para fora do taxi o que iria lhe atrasar ainda mais. Com estranhos nunca se sabe. Resolveu telefonar para sua mãe, não que precisasse falar com ela mas precisava se defender, se escudar daquele estranho. Nas cidades grandes, onde as pessoas não se conhecem, quando se sai para as ruas é bom colocar a armadura, se defender na competição, empurrar antes de ser empurrado e , no meio da multidão, em caso de insegurança, desembainhar seu celular e telefonar para alguém conhecido, qualquer um que nos ame e nos valorize enquanto transitamos no meio de estranhos para quem não temos o menor valor e a menor importância. Se ela não tivesse o que dizer, sua mãe certamente teria, nem que fôsse reclamar porque todos a estavam esperando para irem à formatura do primo. Outro dia sua mãe reclamou, durante uns quinze minutos, sobre o aumento dos preços da manteiga, do feijão e de outros itens e enquanto declinava a série de itens Renata pensava no horrivel fim de semana que a esperava, tendo que estudar matemática. Já que a mãe estava falando de comida aproveitou para pedir que fisesse um bolo de laranja, seu consolo nas penosas horas de estudo. Enfim chegou no Leblon, livrou-se daquele motorista, a corrida saiu cara mas em compensação o celular tocou e era Gabriel. Combinaram de se encontrar no dia seguinte. Quem sabe ela teria uma chance com ele.
Mariana acordou e olhou com prazer para a decoração de seu quarto, tudo novo, escolhido por ela e Bruno, para o apartamento, também novo, no condomínio que tinha tudo, como ela queria: sauna, piscina e play para os filhos que viriam. Na casa de seus pais quase nada mudava desde que ela tinha nascido, a não ser os eletrônicos. E só tinha garagem para um carro e olhe lá. Ela passou os anos da faculdade procurando vaga na rua quando chegava, um suplício diário. Agora, não. Tinha tudo o que queria. Olhou o mar ao longe, linda vista, indevassável. As cortinas eram apenas elementos decorativos e não defesa da intimidade.
Bruno já tinha saído para o trabalho. Ela tinha marcado com duas clientes, precisava se apressar. Por enquanto estava trabalhando com decoração. Mas ela era jovem, poderia expandir, conseguir contratos para decorar escritórios, portarias de prédios porque antevia seu progresso nesta direção já que gostava mais de decoração do que de arquitetura pròpriamente.
Mariana desceu até a garagem, passando por alguns vizinhos que cumprimentou por conhecê-los da piscina e das reuniões de condomínio. Alí iria criar seus filhos como nas cidades pequenas, onde todos se conhecem e se ajudam, diferente desta selva de pedra onde foi criada, embora adore sua cidade. Ligou seu carro, o rádio, o celular com os fones e não demorou nada para a primeira ligação do dia acontecer, era sempre assim. Porém se distraiu com as ligações, se atrapalhou no trânsito, teve que fazer retornos longos e cansativos e resolveu partir para a segunda cliente. A primeira cliente telefonou muito irada e cancelou seu serviço de forma quase grosseira, como uma menina mimada. Mariana teve que se conformar: Se não se cumpre o combinado, pode sair caro.
Alguns meses se passaram, Bruno não perdia a mania de falar no celular na companhia de Mariana, em qualquer lugar onde estivessem. Por outro lado, Gabriel, seu amigo e frequentador do apartamento, estava cada vez mais presente e não tirava os olhos dela. Enquanto Bruno falava no celular Mariana e Gabriel iam se conhecendo cada vez mais.
Até que um dia, tudo ficou claro para os dois. Mariana não perdeu tempo. Explicou, como pôde, para Bruno sobre sua afinidade com Gabriel. Arrumou suas malas e foi para o apartamento de Gabriel, que já a esperava para recomeçarem suas vidas. Também era um apartamento novo, num condomínio que tinha tudo e a decoração estava boa. Só teria que jogar fora todos os objetos que foram escolhidos pelas ex-namoradas de Gabriel.
Bruno demorou mais a entender a situação. Para ele não foi tão simples assim. Ia para a piscina, sentava e procurava respostas. Tinha conversado com seu lúcido pai, com sua perspicaz mãe, com seu preparado psicanalista, com um padre e até mesmo um rabino estudioso da Cabala mas ninguém conseguia consolá-lo. Desligou o celular que vibrava de forma irritante, o sol bateu com força em seus olhos e foi então que, olhando para o celular percebeu o quanto tinha escondido seu coração de Mariana. O quanto tinha se recusado a se entregar àquela relação. O quanto tinha se defendido atrás daquele celular e todas as ligações vãs. Neste momento viu Mariana chegar com Gabriel vindo em sua direção. Combinaram o horário em que o caminhão iria passar para pegar os objetos mais pesados que pertenciam a Mariana e ainda estavam no apartamento de Bruno.
Mariana se afastou com Gabriel. Bruno a olhou finalizando seu luto. Reconheceu sua culpa, não tinha cumprido o combinado nos votos do casamento. Não precisava mais se rebelar: Porque logo com ele? Porque logo com Mariana? Teria que se acostumar com sua ausência. Aceitou a perda, resolveu se desapegar. Quando Mariana já ia longe, quase fora de sua vista disse, sabendo que não seria ouvido por ela mas que seria ouvido:
- Vai com Deus, Mariana!

terça-feira, 14 de junho de 2011

A CULPA


Sentiu-se culpado ao ver o filho chorando na sua frente, frustrado porque a roda do carrinho quebrara e ele não tinha como consertar àquela hora da noite.
Tentou mas não conseguiu e a criança continuava chorando. Ele culpado.
Culpado foi para a mesa de jantar porque a comida já estava fria pois sua mulher chamara-o para jantar a cerca de meia hora enquanto ele lutava para consertar o carrinho do filho.
Durante o jantar ela lembrou que a conta do açougue vencia no dia seguinte e mais uma vez sentiu-se culpado porque ele não poderia pagar a conta, seu salário ainda não estava disponível, só no dia seguinte. Falaria com o açougueiro pela manhã, antes de ir para o trabalho.
Olhou aquele casal de pinguins em cima da geladeira e sentiu-se culpado porque não achava brega pinguim de geladeira sendo que todo o mundo achava. Não entendia porquê. Geladeira lembra frio, pinguim vive no frio, pinguim combina com geladeira. Que haveria de errado nisso? Mas as pessoas achavam brega, então ele estava errado e deveria se sentir culpado.
De manhã, ao tomar seu café respingou um pouco de café na camisa e sua esposa, com cara irritada, levou a camisa para tirar a mancha. Sentiu-se culpado. Não sabia se deveria esperar que sua esposa retornasse com a camisa em ordem ou se deveria pegar outra, mas aí sujaria mais de uma camisa por dia, o que faria com que se sentisse culpado.
Aguardou uns quinze minutos até que sua esposa retornou, com cara de zangada, sem a camisa e nada disse, o que poderia significar que ele deveria ir buscar outra camisa e sair logo, antes que fizesse algo mais de errado
No ponto de ônibus só conseguiu pegar o terceiro que passou, já que as pessoas se acotovelavam para pegar os ônibus a fim de não chegarem atrasadas no trabalho. Ele se sentiria culpado se acotovelasse uma senhora que poderia ser sua mãe portanto ele chegou atrasado no trabalho, o que o deixou culpado mesmo antes de levar uma bronca do chefe. Não tinha argumentos. Ele que saisse mais cedo de casa. Culpado.
Isso depois de ter passado pelo desconforto de estender sua última nota de cinquenta reais para o trocador que o olhou com maus bofes mas teve que aceitar porque ele não tinha o dinheiro trocado para pagar a passagem. Culpado.
Passou o dia tentanto não ofender ninguém o que é quase impossível para quem que, como ele, trabalhava atendendo ao público justamente no setor de Reclamações. Sim, a culpa deveria ser sua e não da empresa. Pelo o menos as pessoas acalmavam quando viam que ele não procurava justificar os erros mas sim, corrigi-los. Mesmo assim a sensação de culpa só o deixava quando encerrava o expediente. Até que outra coisa acontecesse.
À noite, após passar na padaria e sentir-se culpado porque não lembrara de comprar um sonho para sua patroa, viu de longe, quando chegava perto de casa, sua mulher, a patroa, beijando na boca um homem que se afastava. Congelou. Ficou atrás da árvore para ter certeza que era mesmo sua patroa. Ela entrou em casa. Era. Pensou que a árvore ia cair e a culpa seria sua mas, não, era tontura mesmo e ele é que estava tonto, não a árvore, lógico.
Dirigiu-se cambaleante para casa e entrou. Olhou sua mulher que o recebeu com toda a naturalidade, como se nada estivesse acontecendo.
Foi até a cozinha colocar os pães na mesa e reparou nos pinguins que pareciam sorrir.
- “Ah, éee?!”, falou em bom tom. Sua mulher até estranhou.
Foi até o banheiro e pegou esparadrapo. Achou a tesoura e pegou a caneta da filha, na mochila, sem pedir licença à menina, o que a fez estranhar.
Sentou-se e escreveu em dois pedaços de esparadrapo: a culpa é sua.
Na cozinha colou os esparadrapos nos pinguins, um em cada um, deixando-os bem visíveis..
Sentou-se , fez seu lanche sem dar maiores explicações e foi até a sala. Sua mulher assistia TV, como sempre , só que era quarta-feira, dia de futebol. Pegou o controle, trocou o canal para o futebol e ela que se atrevesse a reclamar.
Ela foi até a cozinha, nada disse, e para o quarto se dirigiu.
Ele olhou para trás e viu que os pinguins não sorriam mais.Estavam ligeiramente voltados um para o outro com os dizeres dos esparadrapos acusando-os, reciprocamente: a culpa é sua.
Enfim agora ele entendia que a culpa nunca mais voltaria para ele porque estava sendo discutida eternamente pelos pinguins e enquanto isso, que cada um carregasse suas culpas, ele não carregaria mais o mundo nas costas.
Virou-se para ver um gol contra o Flamengo mas não esquentou a cabeça. A culpa, com certeza não era dele.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Comida de gato
Junho 2011

Shaina acordou por volta das sete horas, como de costume, depois que seu marido morreu, a cerca de dez anos.
Vive só, na mesma casa em que mora há mais de quarenta anos, no bairro de Sta. Teresa, no Rio de Janeiro. A casa ainda está em bom estado, não precisa de grandes reformas, o que convém à Shaina, já que vive com a limitada pensão de viúva que seu marido lhe deixou. A casa e a pensão. Não tiveram filhos.
A localização da casa, perto do Largo dos Guimarães, nesta colina, próxima ao centro da cidade lhe convém porque a atividade turística dos últimos anos torna a área mais movimentada e sua casa mais segura.
Shaina não vive, pròpriamente, só. Tem a companhia de muitos gatos que entram e saem de sua casa livremente. Por sorte - “O que será sorte?”, pensa ela, às vezes – não tem nenhum gato com defeito, ou seja, com olho furado, mancando de alguma pata, com rabo mordido ou machucado... Caso tivesse trataria deles do mesmo jeito, não deixaria de lhes dar abrigo e comida.
Shaina herdou este nome difícil de sua avó, indígena. E também os cabelos, lisos e grossos, brancos há muito tempo pois já está com quase setenta e um anos de vida. Disseram-lhe que o nome significava “Alta e forte” ou “No meu caminho”. Para ela o chato era ter que explicar sempre que seu nome se escrevia com “s” e agá. Quanto à pronúncia era fácil, as pessoas pegavam logo: Shaaaina, com a primeira sílaba mais forte.
Se levantou da cama, nesta terça-feira, e logo arrumou os lençóis. Depois de fazer sua higiene pessoal foi abrir a porta para os gatos que conseguiram chegar a tempo de dormir dentro de casa.
Quando abriu viu que Pepita, uma gata que aparentava menos de um ano de idade e que sempre chegava a tempo de dormir dentro de casa, estava tremendo um pouco e a olhava com tristeza. Sentou-se do lado de Pepita, acariciou-a e disse : Já cansei de ensinar a vocês que a vida não é questão de pressa nem de vagar, é timming. Como você é novinha, vou te explicar do meu jeito: É ritmo, tempo conveniente. “Saber” o momento certo de fazer alguma coisa, entendeu? Você sabe que eu fecho a porta por volta das seis da tarde então, se quer dormir dentro, chegue antes, Pepita.
Shaina continuou a acariciar a gata certificando-se que Pepita não tinha nenhum problema de saúde, só estava chateada mesmo. Para ela, ao contrário do que muitos dizem, os gatos têm expressão facial. Identificava algumas: curiosidade, medo, desconfiança, bem-estar, serenidade e até dúvida.
Resolveu dar um leite morno para Pepita, já que tinha feito doze graus na madrugada e os gatos que dormiram fora, coitados... Shaina espalhava mantas baratas pela varanda de sua casa mas os que conseguiam chegar a tempo de dormir dentro de casa ficavam mais abrigados, lògicamente.
Se dava ao trabalho de ter um recipiente com areia para eles, bichanos, limpos, que usavam o “banheiro”comunitário sem criar nenhum problema.
Quanto à comida de gato, era angú e bofe mesmo, não dava para melhorar isso. Já tinha que comprar areia para os que dormiam dentro. O saco de um quilo de ração estava custando dezesete reais e cinquenta centavos, muito caro para comprar sempre. Leite, então, era um luxo que daria agora para Pepita, só porque a gata estava precisando de aconchego.
Olhou para o céu. “E eu que pensei que ia chover! Quem é que sabe o dia de amanhã?...” Acreditou que Pepita a olhava como quem pergunta: E todo o seu passado? “Que importa o passado, passou.
Entrou para dar leite à gata, afastando os outros fregueses do luxo. Depois foi para o quintal, seguida pelos gatos de dentro e os de fora, distribuindo fubá e bofe nos pratos espalhados onde todos comiam sem brigas.
Tomou seu café da manhã e se vestiu, arrematando, como sempre, com seu casaco vermelho, o qual lavava uma vez por mês já que não conseguia se separar dele, a não ser no alto verão.Também não dispensava um último ítem que era uma de suas pulseiras de artesanato. Escolheu a de bolas de madeira pintadas na cor marfim, o que ia bem com sua pele morena herdada de sua mãe, de origem negra. Suas feições, entretanto, eram de mulher branca, da parte de pai. Sentia-se uma autência brasileira, com raízes nas três raças. “Raça, não, que só existe uma raça: a raça humana.” Porém poderia sair por aí com uma faixa escrita: Ordem e Progresso. “Que lema bonito”, pensou.
No entanto seu sangue índio falava mais forte e a natureza era o que lhe chamava mais atenção.
Precisava passar no açougue e subir a Almirante Alexandrino para afiar a tesoura grande porque estava em tempo de cortar seus cabelos. Ao supermercado planejava ir no dia seguinte e na quinta-feira pretendia olhar os preços dos itens na farmácia. Tinha que gastar pouco e no dia a dia para não faltar o necessário.
Quando voltou, disposta a enfrentar a tarefa de cortar os cabelos ainda antes do almoço, bateram palmas à porta. Tocaram a campainha também. Ela foi ver o que era e teve que sair até o portão.
Era um entrevistador do Ibope. Ouviu, por delicadeza mas tão logo pode cortou a fala do rapaz dizendo: Não posso atender, sinto muito.
Afastou-se do portão, sem pressa, porém não mais respondeu até entrar em casa. Não era prudente fornecer informações para ninguém. Eles que montassem suas estatísticas generalizadas e por amostragem com outras pessoas, tudo era mesmo relativo.
Shaina foi para o banheiro cortar seus cabelos. Usava a técnica de juntá-los no alto da cabeça, debruçar para a frente e fazer o corte, com a tesoura bem afiada. Era sempre a mesma coisa, de tempos em tempos.
Depois de servir a comida dos gatos almoçou sossegada prestando atenção no silêncio e lembrando do barulho dos bondinhos amarelos do bairro.
Assim que terminou de lavar a louça e guardar tudo foi para o quintal olhar as plantas enquanto alguns gatos lhe importunavam a caminhada, se esfregando em suas pernas para pedir carinho ou dar aprovação à sua protetora. Ela os acariciava e os afastava para ver as plantas. “Essas gibóias estão precisando de rega”. “Esta planta morreu, vou arrancar logo”.
O telefone tocou. Shaina não quis atender. Devia ser da Associação do Bairro que sismava que ela se sentia solitária. Ela cumprimentava a todos da vizinhança, ouvia a alguns, por todos esses anos. “Que mais eles queriam?” pensava.
Não era dada a filosofar mas fez uma rápida avaliação : Não sou uma idosa esquisita que mora sòzinha numa casa e não se dá com ninguém. Acha que não precisa de ninguém. Não é o caso.
Sentou-se. Olhou os gatos que iam e vinham livremente, há anos. Uns sumiam, outros apareciam. Os mais constantes ganhavam nomes. Aos outros chamava de bichanos.
Anotou mentalmente que no sábado iria comprar, no botequim, suas duas latinhas de cerveja para o domingo.
Lembrou, com certa satisfação, que à noite tinha o programa sobre capoeira na Tv Brasil. Não sabia que esta dança e esporte também era considerada arte marcial. Chegou a anotar em um caderno as palavras: chutes, rasteiras, cabeçadas, joelhadas, cotoveladas, acrobacias. Tudo isso remetia à política brasileira. Gostava da música.
Olhou o céu, as plantas. Sentiu o cheiro do ar do inverno carioca. Olhou os gatos, apaziguadores, espalhados por todo o quintal. “Gosto mais de bicho que de gente”, pensou, sem querer desprezar a sua espécie tão precisada de misericórdia.