sábado, 25 de junho de 2011

EM OBRAS

A capela do colégio estava em obras. Eu, irmã Marcelina, tinha que seguir os passos apressados da irmã superiora, Gertrudes, que comandava o colégio com rigor e eficiência, características de sua pessoa.
Havia ocorrido uma infiltração na capela e as obras eram necessárias mas não ficariam prontas para aquele início do ano letivo, março de 1969. Ao contrário, parecia que se tornariam as obras de Sta. Engrácia, intermináveis, já que estava sendo difícil contratar uma equipe que comparecesse todos os dias, com regularidade. A mão de obra na cidade serrana do Rio de Janeiro era precária e sem especialização embora os operários tivessem muito boa vontade, a meu ver. A placa EM OBRAS estava fixada na grama, bem em frente à capela e irmã Gertrudes comparecia diàriamente ao local para falar com o mestre de obras.
- Senhor Manuel, porquê o senhor me chamou hoje. Qual a novidade?
-Madre, a infiltração é maior do que esperávamos. Vamos ter que retirar todas as pastilhas do altar e recolocar depois do conserto do telhado. Queria mostrar para a senhora as que achei no comércio, na cor verde.
- Verde? Como o céu pode ser representado na cor verde, seu Manuel? De modo algum. Teremos que achar pastilhas na cor azul. Nem que tenham que vir da capital . Então vão ter que quebrar tudo?
- Seu Manuel assentiu.
- Muito cuidado com as volutas das colunas e com o trabalho de marchetaria que temos na capela porque o senhor sabe que, hoje em dia, é difícil achar quem faça.
- Seu Manuel concordou novamente e irmã Gertrudes virou as costas vindo a comentar comigo: Desde a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, no último mandato do presidente Jucelino Kubitschek que o nosso estado empobreceu em tudo. Este presidente tem o Plano de metas de “Cinquenta anos em cinco.”Humm. Qual a pressa? Hoje em dia nada se faz com pausa. Depois da inauguração da Tv Tupi Rio em 1951,(Penso que em janeiro, vou ver em que dia), que as pessoas não conversam mais, querem ver televisão. O que mais virá para tomar o tempo das pessoas ? Com o governo militar de 31 de março de 1964, ficou mais difícil achar pessoas especializadas para as obras. Parece que todos estão na política, a favor ou contra. A moda na arquitetura, por influência de Brasília também mudou muito. Quem se importa com o barroco ou mesmo o estilo renascentista tão comum na capital?! Agora tudo são linhas retas, sem floreados e ornamentos. Quero preservar os enfeites da capela, espero que não quebrem tudo para consertar as infiltrações. Já mandei retirar os santos com o máximo de cuidado e levá-los para meu escritório. Viu se providenciaram isso?
- Vou ver agora mesmo, madre. Com sua licença.
- Madre Gertrudes gostava de datas completas, de precisão. Além de dirigir o colégio também dava as aulas de catecismo. Algumas alunas, em dificuldade, vinham a mim, para desabafar e eu, em nome de Jesus as ajudava no que me era espiritualmente permitido.
Uma das alunas chamava-se Verônica. Seu pai, desgostoso com a mudança da capital para Brasília, pediu demissão do emprego e mudou-se para nossa cidade. Verônica e a irmã Marcela estavam agora no último ano do curso secundário.
Marcela não costumava pedir conselhos. Mas Verônica recorria muito à mim.
Foi como fiquei sabendo que seu pai era um tanto rude com a mãe. Esta, segundo me disse Verônica, procurava seguir o conselho que São Vicente Ferrer, o santo, deu à uma mulher casada para ter harmonia com o marido briguento: “Quando ele chegar do trabalho encha a boca de água e fique assim com a boca cheia por mais tempo que puder”. A mãe de Verônica, nos momentos críticos, dirigia-se prontamente para a cozinha e bebia um copo de água enquanto pedia a Deus para livrá-la do pecado da ira, o único dos sete que a incomodava. Depois confessava, comungava para se renovar e assim seguia.
Eu não tinha muito o que dizer à Verônica quanto à este problema familiar a não ser lendo trechos da Bíblia: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim , e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo que até sete mas até setenta vezes sete.” Ou, então : “E quem não toma a sua cruz e não segue após mim, não é digno de mim.”
O ano letivo iniciou e assim também as dificuldades de Verônica nas aulas de catecismo. Ela me revelou que contou para irmã Gertrudes, em voz alta, durante uma aula de catecismo, que sua mãe teria interrompido seu pai para fazer uma pergunta corriqueira sobre o jantar e ele, que estava ouvindo música, sentado em sua poltrona, respondeu de forma hostil: - Música erudita e coito não se interrompe!
Verônica quis saber o que era coito e porquê não se podia interromper. Madre Gerturdes, segundo eu soube, ficou vermelha, num misto de pudor e rancor, respondendo à menina : - Isto não é para a sua idade! Esqueça!” Quando soube pedi à Deus misericórdia porque sentia uma forte vontade de rir mas não podia por todas as razões , fossem morais, disciplinares e especialmente religiosas.Recomendei à Verônica que visse o significado da palavra no dicionário e não se preocupasse mais com o assunto porque ainda era cedo para ela pensar nisso. O problema era que todas as aulas de irmã Gertrudes seguiam essa linha. As respostas eram definitivas e sem explicação com uma resposta padrão muito utilizada: Isto é dogma, não se questiona. Aprenda e pronto.
Pude perceber, naquela época que não só Verônica como também outras meninas estavam prestes a sair da escola, pois terminariam o curso em dezembro e estavam se afastando da religião. Isto, a meu ver era grave porque o mundo estava mudando muito e rápido e estas meninas ficariam sem o apoio de um grande mestre. Verônica também estava EM OBRAS, tudo precisava ser derrubado e reconstruído e eu precisava ajudar.
Quando Verônica me questionou sobre a virgindade de Maria lembrei-me que sua irmã, Marcela, talvez tivesse algo a lhe dizer. Marcela já havia se afastado de nós mas era uma boa pessoa que trilhava outros caminhos. Verônica tinha espirito independente mas Marcela, mais que isto, era livre.
- Ooooooooommmmmmm! Oooooooooommmmmmm!
Foi o que ouviu Verônica quando entrou no quarto e sua irmã estava sentada na cama, de olhos fechados, vestindo uma bata indiana e repetindo este som. Um incenso estava queimando. Ela não tinha certeza se podia interromper por isso aguardou um pouco.
Como este ritual lhe pareceu interminável, ela perguntou a Marcela se poderia falar. Marcela abriu os olhos lentamente, sentou-se em posição comum e se prontificou a ouvir a irmã.
- Marcela. Essa questão de Maria ser virgem e algumas outras quetões me incomodam. Batem de frente com a minha racionalidade. Mas eu não sou como você, não poderia viver sem os Santos.
- Verônica, acredite no que quiser. A crença é uma exigência interna, é pessoal.
- Mas eu quero continuar sendo Católica. É a minha formação.
-Está bem. O que sei é que existe uma corrente que diz que houve um erro de tradução da Bíblia. Que a Bíblia dizia “jovem”Maria e isto foi traduzido por “virgem” Maria. Além disso o Messias deveria vir da casa de David e portanto ser descendente de José, que inclusive teve outros filhos com Maria. Este filho, era especial, nasceu para ser um mestre, um avatar. Como Buda, Krishna e outros. Se eu fôsse você não me preocuparia tanto com a “mitologia católica” ou os dogmas. Tome algumas coisas de forma simbólica e não literal e, principalmente, siga o seu mestre, seja Ele quem fôr. Agora me dá licença porque eu quero voltar para a minha meditação.
- Mas só mais uma coisa: Se eu não acredito em tudo da Católica não posso ser Católica!
- Acredite no que você quiser. Seja o que você quiser.
Verônica deixou o quarto e trouxe suas outras dúvidas para mim.
O inverno já havia terminado mas a primavera na serra ainda era bem fria. Estávamos quase no final do ano letivo. Verônica ainda não havia se decidido quanto à Faculdade que iria cursar e as opções na região eram poucas. Já sua vida afetiva estava tomando um rumo porque o namoro com Jonas iria completar seis meses. Mas ela não permitia avanços íntimos. Precisava pensar mais no assunto. Tinha uma noção muito vaga do seu futuro.
Estávamos quase no Natal quando Verônica me perguntou sobre a Páscoa. Não tinha dúvidas sobre o Natal.
- Irmã Marcelina, como Cristo morreu na cruz para nos salvar, nos livrar dos pecados? Isto nos autoriza a pecar?
- Não, Verônica, Ele disse :” Não necessitam de médicos os sãos, mas, sim, os doentes.” Ele ampara os pecadores arrependidos. É como se Ele dissesse: Se caires, levanta, Eu estou aqui. Aliás isto está dito de várias formas no Evangelho, você precisa reler.
- Mas minha irmã fala muito sobre o desapego e sobre a necessidade de convivermos com a eterna mudança, renovação. Onde temos isso?
- Verônica, “Olhai paraos lirios do campo”. Você precisa reler o Novo Testamento. A Páscoa Católica simboliza a renovação, o início de uma nova etapa com a Ressureição de Cristo. Quer maior desapego do que morrer na cruz, doar sua vida, quando poderia ter fujido? E orientou seus discipulos para continuarem pregando Sua palavra, o que Ele ensinou, em nome de Deus.
- Só mais uma coisa. E a questão da reencarnação? Porquê só temos uma vida, porquê só temos uma chance? Não é pouco para evoluirmos? Isso já é coisa da minha irmã... Que, aliás, juntou dinheiro, foi para o Festival de Woodstock e não voltou mais.
Abri a minha Bíblia e li: E passando Jesus viu um homem cego de nascença. E os seus discipulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.
Recomendei à Verônica que continuasse lendo até a cura do cego na esperança que ela entendesse que o processo de evolução espiritual, para mim, e talvez para ela, não necessitasse de mais do que uma vida.
- Verônica, o ano letivo está terminando, não nos veremos com tanta frequência. Lembre-se de que, se você quiser aceitar, Jesus disse: “E eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação do século. Amén.”
- Madre, quero fazer a primeira comunhão ainda este ano.
Verônica se foi e eu me dirigi até a capela onde, finalmente, eu tinha sido autorizada por madre Gertrudes a retirar a placa EM OBRAS. E o fiz com gosto, porque também Verônica estava pronta para uma nova etapa.

Um comentário:

  1. Conto novo. Trata-se de um colégio de freiras, na região serrana do Rio de Janeiro, no final dos anos '60.São duas madres com temperamentos diferentes. São duas jovens com temperamentos diferentes. Uma tarefa para madre Marcelina, segundo suas convicções.

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