sexta-feira, 8 de julho de 2011

Senhoras e senhores, o tempo acabou
04.07.2011
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Tiago saiu de casa, cedo, para fazer a última prova. Estava pleiteando uma bolsa de estudos e esta prova era decisiva, a diferença entre cursar um bom colégio, com excelentes professores ou ter que fazer o segundo grau em um curso supletivo qualquer, barato, que era o que os seus pais podiam pagar.
Havia estudado bastante, perdido várias baladas para poder ter uma chance. Mas não se sentia seguro. Convivia com muitas pessoas que falavam errado, cursara seu primeiro grau numa escola pública com as dificuldades das greves, falta de estrutura, falta até de computador. Tinha que pagar pelo uso de computador nas lan houses tentando aperfeiçoar seus conhecimentos, economizando o pouco dinheiro que seus pais podiam lhe dar.
Atravessou a rua, inseguro, pediu informações no prédio e descobriu a sala da prova. Sentou-se, olhou tìmidamente em volta para os outros candidatos. Respirou fundo, pedindo aos céus que não tivesse os famosos “brancos”, quando se esquece toda a matéria devido ao nervosismo.
A prova foi distribuída. Deram o sinal para começarem. Tiago leu os enunciados das questões, tentando se manter calmo e avaliando quais as questões que achava mais fáceis. Começou por estas, para não perder tempo. Conseguiu fechar com sucesso algumas questões e partiu para as mais dífíceis. Fez os cálculos com números bem legíveis porque poderiam contar pontos mesmo que a sua resposta final estivesse errada. Refez os cálculos em três questões antes de se arriscar a dar a resposta definitiva. Porém começou a sentir uma movimentação na sala e achou melhor escrever ràpidamente as respostas para não deixar nada em branco, enquanto a movimentação em seu redor aumentava, até que ele e os outros candidatos ouviram a frase fatal: - Senhoras e senhores, o tempo acabou.
Guardou imediatamente a caneta e seguiu o procedimento para a entrega da prova sem deixar margem a ter sua prova anulada, como aconteceu a um candidato que insistiu em continuar escrevendo depois do tempo permitido.
Já na rua respirou fundo, preocupado, incerto quanto ao resultado da prova mas agora só poderia aguardar. Caminhou até encontrar o MacDonald’s mais próximo onde pretendia lanchar e não pensar em mais nada.
-2-
Eram dez horas da manhã quando Tarcísio olhou para o relógio na sala de espera da empresa. Tinha passado por três entrevistas ao longo do mês e agora teria que fazer uma prova, talvez de conhecimentos gerais, último passo para conseguir este emprego.
Como, no início, eram vinte candidatos, pelo que conseguiu saber da secretária e agora eram quatro candidatos esperando para fazer a tal prova avaliou que o emprego era seu, questão de ultrapassar esta última etapa. Olhou discretamente para os outros dois rapazes e a moça e se sentiu confortável.
Foram levados para a sala, as folhas foram distribuidas. Achou graça, por um instante, já que estava muito acostumado a escrever no computador e não mais à mão. Porém sua letra era boa, sem problemas. Iniciado o tempo, virou a folha da questão que lhe pedia uma redação sobre os produtos vendidos pela empresa, a posição da mesma no mercado e sugestões para a captação de um maior número de clientes do público alvo. Moleza.
Dada a partida redigiu, sem dificuldade e com coerência porque tinha previsto um tema deste gênero e já tinha esboçado mentalmente algumas idéias no dia anterior. Terminou o texto mas preferiu fazer a revisão com toda a calma até que, por fim, uma voz categórica determinou: - Senhoras e senhores, o tempo acabou.
Entregou a prova, despediu-se das pessoas que estavam presentes e saiu, confiante, retirando o celular do bolso para a primeira chamada do dia enquanto localizava o elevador.

-3-
Acordou decidida a se separar.
Teresa estava casada há cinco anos. Seu marido tinha sido seu professor, era dez anos mais velho que ela e soube impressioná-la, seduzi-la.
Ela reconhecia seu deslumbramento inicial mas o curto namoro que logo virou casamento e os anos de convívio foram, para ela, como um balão que vai murchando. Seu temperamento alegre, de pessoa extrovertida tinha sido gradualmente podado por seu marido que aos poucos evitou seus amigos, seus parentes, suas festas (como ela gostava de dançar!) , suas alegrias, restringindo-a a ver filmes alugados na TV, única diversão do interesse do marido. Resolveu redigir o e-mail.
Começou o e-mail por Meu bem mas achou que isso era para pessoas casadas há mais de vinte anos. Deletou e escreveu:
Querido,
Sinto muito mas nosso casamento acabou. Não é novidade pra você, estamos vendo os sinais a cada dia e hoje é o dia da separação.
Sugiro que vá para a casa da sua mãe até se acomodar em outro lugar ou faça como quiser.
Deixei suas malas no hall de entrada. Venha buscá-las mas, por favor, não entre no apartamento. Vamos deixar o tempo assentar as coisas.
Não se preocupe com o divórcio, eu mesma faço. Fico com o nosso apartamento que ganhei de meu pai e depois você vem buscar suas coisas. Leve seu carro, é claro e eu fico com o meu.
Te ligo em três dias para dar tempo das fichas cairem, ok?
Bjs
Teresa.
Enviou.
Foi tomar seu café e seu banho.
Depois de fazer as malas do agora ex-marido, colocou-as no hall de entrada e voltou para o computador. Acompanhou o andamento de alguns processos pela internet. Releu ràpidamente as cópias dos três processos relativos às três audiências do dia, nada muito complicado: 2 acordos fáceis e 1 adiamento, com certeza.
Almoçou e se dirigiu para o Forum, para as audiências.
Depois disso passou no escritório para atender a uma única cliente.
No escritório só atendia aos clientes, tomando conhecimento inicial do problema, resolvendo se aceitava ou não a causa e tomando as primeiras anotações. O trabalho de fundo ela fazia em casa, à noite, quando lia as peças com cuidado, atenta a cada palavra de cada documento, frente e verso, lendo todos os carimbos e todas as assinaturas. Avaliava até mesmo a gramatura do papel. Uma palavra mal entendida ou negligenciada podia significar a perda ou ganho de uma causa além de desvirtuar e desviar todo o necessário trabalho de pesquisa das leis e jurisprudência em que fundamentava a defesa dos clientes.
Recebeu a cliente aflita que disse que sua empregada doméstica, com quem tinha se desentendido, havia lhe trazido uma enorme cobrança do Sindicato, muito injusta a seu ver, porque só devia à empregada a última semana trabalhada. A mulher disse, muito nervosa, que tinha pavor de se meter com a justiça e que não havia mandado a empregada embora, apenas discutiram e a empregada foi embora no final do dia como sempre.
Teresa pediu o endereço da empregada doméstica. Acalmou a senhora dizendo que iria enviar, no dia seguinte, um telegrama convocando a empregada ao trabalho. Com isto estaria descaracterizando a alegada demissão da empregada, que certamente não iria aparecer para trabalhar. A cobrança do Sindicato perderia seu propósito. Tranquilizou a cliente dizendo que o caso se resolveria fàcilmente no cartório onde o advogado da empregada iria lhe pedir quantia maior do que a oferecida mas Teresa recusaria encerrando a peleja pelo preço justo devido por sua cliente. Esta perguntou, então, o valor dos honorários de Teresa e ela respondeu que cobraria o preço da consulta, para pagar o envio do telegrama e seu deslocamento e tempo no cartório, para encerramento do caso, na data marcada.
Assim que a cliente saiu, Teresa pediu à estagiária que fechasse o escritório e saiu às pressas. Queria estar em casa quando seu ex-marido fôsse buscar as malas.
Já sentada na sala decidiu justificar as razões do divórcio como : incompatibilidade de gênios. Embora, no divórcio consensual não haja necessidade de apresentar motivação, para ela era um lance de humor que se permitia já que a ironia era verdadeira e o magistrado teria que aceitar.
Ouviu o elevador parar, seu marido deslocar as malas. Sentiu que o marido parou, como previra, para ler a etiqueta que Teresa pregara na mala grande com os dizeres que tanto ouvira deste professor: Senhoras e senhores, o tempo acabou.
Sentiu alivio. Sua ira contida, pelos cinco anos de vida que o marido lhe roubara desapareceu naquele instante. Estava livre.

-4-
Tarcila estava em pé ao lado da cama. Seu marido estava morrendo, na sua frente, deitado, imóvel.
Sentia a força da dor. Seu companheiro de uma longa vida estava lhe deixando só. Mas será mesmo que teriam compartilhado a vida, entre tantas correrias?
Tarcila tinha corrido durante anos, para a escola onde dava aulas e para a casa, cuidando dos filhos. A famosa dupla jornada. Seu marido corria para o trabalho, ajudava-a lavando a louça do jantar e com as crianças.
Ele não teve tempo de se aposentar, nem ela. As décadas passaram rápido, os filhos cresceram rápido.
Mas eles se olhavam e sorriam quando as crianças brincavam; eles se olhavam e se entendiam quando a festa estava chata e era hora de debandar. Eles até se olharam uma vez, dentro de uma loja, quando estavam afastados. Ela olhou para um homem gordo e voltou a olhar para o marido, que olhou para o homem gordo e voltou a olhar para ela, compreendendo que ela estava dizendo: Você está se achando gordo mas este aí está muito pior. E o olhar dele foi a resposta: De fato.
Tarcila queria olhar mais uma vez dentro dos olhos de seu marido.
Mas ele parou de respirar quando Tarcila ouviu sua própria voz repetindo a frase batida que ela dizia a seus alunos no final de cada prova : Senhoras e senhores, o tempo acabou.
PASSAPORTE VENCIDO
27 de junho, 2011

Georg era o nome de meu pai. Ele me nomeou Jacques, o que veio a salvar minha vida quando fugimos da Alemanha, em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 a 1945. As mulheres da família tinham os nomes típicos judeus, sendo Sara, minha mãe, Deborah, minha esposa e assim por diante.
Eu já estava estabalecido como moldureiro em minha cidade, Baden Baden quando começamos a sentir o cheiro de perigo no ar.
Diz a história que o Tratado de Versalhes foi a causa mais importante, indireta, para o início da guerra porque sujeitou o povo alemão a grande humilhação, culpando a Alemanha e seus aliados pela primeira guerra mundial e impondo aos alemães pagamentos de somas vultuosas aos Aliados, com graves consequências na economia do país, provocando alta inflação. Isto gerou o forte sentimento nacionalista que veio a ser usado por Adolf Hitler e o Partido Nazista, com sua ideologia racista que apregoava a superioridade da raça ariana identificando-a com o povo alemão. Esta teoria foi trazida por uma obra de 1899 do inglês Chamberlain, que foi chamado de O antropólogo do Kaiser. O preconceito e hostilidade contra os judeus gerou a perseguição da qual alguns de nós conseguimos escapar.
Quando atiraram a primeira pedra em nossa loja resolvi vendê-la, sem pestanejar, e partir para Lisboa onde calculei que a guerra não chegaria.
Após vender a loja, a casa, móveis e algumas jóias escapamos de Baden Baden, de carro, à noite, com poucas malas. Eu e minha mulher, Deborah estávamos com 30 anos, nossa filha Anna com 3 anos e meu pai Georg com 70 anos. Minha mãe Sara havia falecido.
Deixamos nossa terra para trás e enquanto eu dirigia pensei em quantos grandes homens a Alemanha havia produzido. Filósofos como Kant, Hegel, Schelling, Schopenhauer, Nietzche. Escritores como Goethe e Schiller, os Irmãos Grimm, Thomas Mann, Herman Hesse. Compositores como Handel, Bach, Beethoven, Schumann, Mendelssohn(Também judeu), Brahms. Eu havia passado toda a minha infância, adolescência e juventude em Baden Baden, no vale do rio Oos, chegando à planície do Reno. Não esqueceria o ar das montanhas da Floresta Negra e das fontes termais. Não esqueceria o gosto da salsicha, da cerveja e do bolo Floresta Negra que veio a ser divulgado no mundo inteiro.
Teríamos que passar pela França, que foi ocupada em 14 de julho de 1940 e precisamos da ajuda da resistência francesa na figura da corajosa Margot. Ela nos ajudou na travessia desde a cidade de Strasbourg, passando por Lyon e Toulouse até Andorra. Após atravessarmos os Pirineus pudemos seguir, por conta própria até Madrid e por fim, até Lisboa. Porém tivemos que deixar para trás um passageiro: meu pai Georg.
Em uma das barragens fomos parados pelos nazistas que nos mandaram descer do carro naquela noite gelada e nos pediram os documentos. Meu pai estava com o passaporte vencido. Ele não me deixou providenciar sua documentação, disse que ele mesmo o faria. Penso hoje que, aos 70 anos, meu pai não queria deixar para trás sua terra, sua esposa Sara, sua história de vida. Ele se considerava alemão mesmo que os alemães lhe dissessem agora o contrário. Não estava preocupado com as consequências.
Vi seus olhos fixados em mim, apesar da pouca claridade das lanternas e seus olhos diziam para que eu seguisse em frente. Foi levado por dois homens que o puseram num caminhão e nos deixaram partir.
Seguimos, tensos, a dura travessia comendo cascas de batatas e pão duro, evitando qualquer sentimento que nos fizesse fraquejar na luta pela nossa sobrevivência. Nossa meta era Lisboa e era tudo o que importava.
Depois de estabelecidos em Lisboa, com a ajuda de diversas pessoas tanto da comunidade judaica como outras contrárias à guerra, consegui me reestabelecer no comércio como moldureiro, abri uma loja e continuei a vida com a ajuda de minha mulher Deborah e Anna, nossa filha. Em 1943 nasceu nosso filho Luis.
Ao registrá-lo aproveitei para pedir às autoridades portuguesas a mudança de meu nome Jacques para Jaime. Aqueles alemães que nos pararam na barreira em que levaram meu pai só me permitiram continuar devido à minha origem francesa por parte de meu avô, pai de minha mãe, judia, filha de mãe judia.O nome Jacques, é de origem francesa. O oficial simpatizou com este detalhe naquele momento decisivo e eu nunca soube porquê. Em Lisboa passei a me chamar Jaime, que vem do hebraico Jacó e significa “o que vence, o vencedor”.
Lembro-me de Luis, ainda criança, se queixar da sopa de legumes que Deborah havia feito para nosso jantar. Disse que na casa dele haveria fartura. Nem eu nem Deborah tivemos ânimo para repreendê-lo ou vontade de nos lembrarmos das cascas de batatas e pão duro que comemos para chegar até a presente sopa de legumes tão saborosa no agradável inverno de Lisboa.
Contrariando a média das famílias nas quais as mulheres ficam viúvas e os homens se vão cedo, eu também perdi minha Deborah assim como meu pai Georg tinha perdido sua Sara. Luis, já rapaz, que havia se casado com Maria João insistiu para que eu fôsse morar com eles. Como o apartamento da Avenida de Roma era espaçoso e vinha a caminho um neto, aceitei, vendi a loja e mudei meu estilo de vida. Nasceu Antonio, em 1966 e eu, portanto me tornei avô aos 55 anos. Pretendia dar atenção ao neto já que ao filho nunca fora possível devido à dedicação ao trabalho, o que me parece bastante comum para todas as gerações.
Agora a família era católica pois Antonio era filho de portuguesa. Para os judeus o que vale é a progenitora. Luis, meu filho,embora nascido em Lisboa era judeu por ser filho de mãe judia, minha saudosa Deborah.
Minha filha Anna casou-se com um francês e foi morar em Paris.
Em 1977, quando eu estava com 66 anos fui a Baden Baden rever minha cidade natal. Como era natural tudo estava muito mudado. Consegui localizar fragmentos da minha infância, fragmentos do dia da partida e alguma saudade, termo português por excelência. A vida me fez estrangeiro em meu país e natural do país dos outros. Não podia me queixar, sobrevivi. Meu filho Luis e meu neto Antonio jamais compartilhariam este sentimento tão peculiar que só algumas pessoas conhecem.
Em 1983 Antonio estava com 17 anos e eu com 72. Durante a refeição ele se queixou do frango com arroz servido por sua mãe após um consomé de legumes delicioso sendo que a refeição ainda contava com os deliciosos doces portugueses. Havia pastéis de Santa Clara e os mundialmente famosos pastéis de natas feitos por Maria João para a sobremesa.
- Venha comigo, avô, para a terra da fartura, ó pá.
Antonio estava decidido a emigrar para o Brasil onde, dizia, poderia comer bifes de filé mignon com batatas fritas o quanto quisesse.
Olhei para Luis que não se animou a repreender o filho. Lembrei-me de meu pai que certamente morrera de fome em algum campo de concentração. Desejei a Antonio que o futuro lhe trouxesse um filho que se queixaria da comida de sua casa. Seu filho seria seu mestre.
Levantei-me, por curiosidade e fui até a gaveta onde guardava meu passaporte e observei, mais uma vez, que estava vencido. Nunca tive intensão de renová-lo. Meu pai perdera a vida por causa desta singela caderneta de papel e seus carimbos. Eu não desejava outra vida em outro lugar. Meu passaporte, numa espécie de solidariedade a meu pai, continuaria vencido.