terça-feira, 7 de junho de 2011

Comida de gato
Junho 2011

Shaina acordou por volta das sete horas, como de costume, depois que seu marido morreu, a cerca de dez anos.
Vive só, na mesma casa em que mora há mais de quarenta anos, no bairro de Sta. Teresa, no Rio de Janeiro. A casa ainda está em bom estado, não precisa de grandes reformas, o que convém à Shaina, já que vive com a limitada pensão de viúva que seu marido lhe deixou. A casa e a pensão. Não tiveram filhos.
A localização da casa, perto do Largo dos Guimarães, nesta colina, próxima ao centro da cidade lhe convém porque a atividade turística dos últimos anos torna a área mais movimentada e sua casa mais segura.
Shaina não vive, pròpriamente, só. Tem a companhia de muitos gatos que entram e saem de sua casa livremente. Por sorte - “O que será sorte?”, pensa ela, às vezes – não tem nenhum gato com defeito, ou seja, com olho furado, mancando de alguma pata, com rabo mordido ou machucado... Caso tivesse trataria deles do mesmo jeito, não deixaria de lhes dar abrigo e comida.
Shaina herdou este nome difícil de sua avó, indígena. E também os cabelos, lisos e grossos, brancos há muito tempo pois já está com quase setenta e um anos de vida. Disseram-lhe que o nome significava “Alta e forte” ou “No meu caminho”. Para ela o chato era ter que explicar sempre que seu nome se escrevia com “s” e agá. Quanto à pronúncia era fácil, as pessoas pegavam logo: Shaaaina, com a primeira sílaba mais forte.
Se levantou da cama, nesta terça-feira, e logo arrumou os lençóis. Depois de fazer sua higiene pessoal foi abrir a porta para os gatos que conseguiram chegar a tempo de dormir dentro de casa.
Quando abriu viu que Pepita, uma gata que aparentava menos de um ano de idade e que sempre chegava a tempo de dormir dentro de casa, estava tremendo um pouco e a olhava com tristeza. Sentou-se do lado de Pepita, acariciou-a e disse : Já cansei de ensinar a vocês que a vida não é questão de pressa nem de vagar, é timming. Como você é novinha, vou te explicar do meu jeito: É ritmo, tempo conveniente. “Saber” o momento certo de fazer alguma coisa, entendeu? Você sabe que eu fecho a porta por volta das seis da tarde então, se quer dormir dentro, chegue antes, Pepita.
Shaina continuou a acariciar a gata certificando-se que Pepita não tinha nenhum problema de saúde, só estava chateada mesmo. Para ela, ao contrário do que muitos dizem, os gatos têm expressão facial. Identificava algumas: curiosidade, medo, desconfiança, bem-estar, serenidade e até dúvida.
Resolveu dar um leite morno para Pepita, já que tinha feito doze graus na madrugada e os gatos que dormiram fora, coitados... Shaina espalhava mantas baratas pela varanda de sua casa mas os que conseguiam chegar a tempo de dormir dentro de casa ficavam mais abrigados, lògicamente.
Se dava ao trabalho de ter um recipiente com areia para eles, bichanos, limpos, que usavam o “banheiro”comunitário sem criar nenhum problema.
Quanto à comida de gato, era angú e bofe mesmo, não dava para melhorar isso. Já tinha que comprar areia para os que dormiam dentro. O saco de um quilo de ração estava custando dezesete reais e cinquenta centavos, muito caro para comprar sempre. Leite, então, era um luxo que daria agora para Pepita, só porque a gata estava precisando de aconchego.
Olhou para o céu. “E eu que pensei que ia chover! Quem é que sabe o dia de amanhã?...” Acreditou que Pepita a olhava como quem pergunta: E todo o seu passado? “Que importa o passado, passou.
Entrou para dar leite à gata, afastando os outros fregueses do luxo. Depois foi para o quintal, seguida pelos gatos de dentro e os de fora, distribuindo fubá e bofe nos pratos espalhados onde todos comiam sem brigas.
Tomou seu café da manhã e se vestiu, arrematando, como sempre, com seu casaco vermelho, o qual lavava uma vez por mês já que não conseguia se separar dele, a não ser no alto verão.Também não dispensava um último ítem que era uma de suas pulseiras de artesanato. Escolheu a de bolas de madeira pintadas na cor marfim, o que ia bem com sua pele morena herdada de sua mãe, de origem negra. Suas feições, entretanto, eram de mulher branca, da parte de pai. Sentia-se uma autência brasileira, com raízes nas três raças. “Raça, não, que só existe uma raça: a raça humana.” Porém poderia sair por aí com uma faixa escrita: Ordem e Progresso. “Que lema bonito”, pensou.
No entanto seu sangue índio falava mais forte e a natureza era o que lhe chamava mais atenção.
Precisava passar no açougue e subir a Almirante Alexandrino para afiar a tesoura grande porque estava em tempo de cortar seus cabelos. Ao supermercado planejava ir no dia seguinte e na quinta-feira pretendia olhar os preços dos itens na farmácia. Tinha que gastar pouco e no dia a dia para não faltar o necessário.
Quando voltou, disposta a enfrentar a tarefa de cortar os cabelos ainda antes do almoço, bateram palmas à porta. Tocaram a campainha também. Ela foi ver o que era e teve que sair até o portão.
Era um entrevistador do Ibope. Ouviu, por delicadeza mas tão logo pode cortou a fala do rapaz dizendo: Não posso atender, sinto muito.
Afastou-se do portão, sem pressa, porém não mais respondeu até entrar em casa. Não era prudente fornecer informações para ninguém. Eles que montassem suas estatísticas generalizadas e por amostragem com outras pessoas, tudo era mesmo relativo.
Shaina foi para o banheiro cortar seus cabelos. Usava a técnica de juntá-los no alto da cabeça, debruçar para a frente e fazer o corte, com a tesoura bem afiada. Era sempre a mesma coisa, de tempos em tempos.
Depois de servir a comida dos gatos almoçou sossegada prestando atenção no silêncio e lembrando do barulho dos bondinhos amarelos do bairro.
Assim que terminou de lavar a louça e guardar tudo foi para o quintal olhar as plantas enquanto alguns gatos lhe importunavam a caminhada, se esfregando em suas pernas para pedir carinho ou dar aprovação à sua protetora. Ela os acariciava e os afastava para ver as plantas. “Essas gibóias estão precisando de rega”. “Esta planta morreu, vou arrancar logo”.
O telefone tocou. Shaina não quis atender. Devia ser da Associação do Bairro que sismava que ela se sentia solitária. Ela cumprimentava a todos da vizinhança, ouvia a alguns, por todos esses anos. “Que mais eles queriam?” pensava.
Não era dada a filosofar mas fez uma rápida avaliação : Não sou uma idosa esquisita que mora sòzinha numa casa e não se dá com ninguém. Acha que não precisa de ninguém. Não é o caso.
Sentou-se. Olhou os gatos que iam e vinham livremente, há anos. Uns sumiam, outros apareciam. Os mais constantes ganhavam nomes. Aos outros chamava de bichanos.
Anotou mentalmente que no sábado iria comprar, no botequim, suas duas latinhas de cerveja para o domingo.
Lembrou, com certa satisfação, que à noite tinha o programa sobre capoeira na Tv Brasil. Não sabia que esta dança e esporte também era considerada arte marcial. Chegou a anotar em um caderno as palavras: chutes, rasteiras, cabeçadas, joelhadas, cotoveladas, acrobacias. Tudo isso remetia à política brasileira. Gostava da música.
Olhou o céu, as plantas. Sentiu o cheiro do ar do inverno carioca. Olhou os gatos, apaziguadores, espalhados por todo o quintal. “Gosto mais de bicho que de gente”, pensou, sem querer desprezar a sua espécie tão precisada de misericórdia.

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