segunda-feira, 30 de maio de 2011

Restaurante Japonês
Maio 2011
Gravando. Estou de costas para as pessoas, olhando pela vidraça do aeroporto, em São Paulo, aguardando a chamada do vôo para Paris.
Comprei este brinquedinho novo, um Iphone da Apple. É o único item de consumo que me mobiliza, de resto o comércio fecharia as portas se dependesse de mim.
Ok. Já que o vôo está atrasado, como sempre, vou gravar alguns dados pessoais, como costumo fazer. Me chamo Pedro, por incrível que pareça, já que sou nissei, filho de japoneses. Meus pais vieram para o Brasil pouco antes do meu nascimento e acharam conveniente me batizarem na Igreja católica com o nome de seu fundador. Queriam falicitar minha adaptação ao Brasil, onde eu seria e fui criado.
Tenho quarenta anos e moro com meus pais. Tive namoradas mas não me casei. As mulheres me assustam um pouco porque são muito reivindicativas. Uma que quase se mudou para minha casa sem ser convidada, mudava os móveis do meu quarto de lugar quase todas as semanas, jogava fora objetos de decoração e comprava outros a seu gosto, foi invasivo demais, tive que romper. Tentei uma nissei, como eu, mas ela, apesar da criação mais contida própria de um lar japonês, já tinha assimilado essa extroversão brasileira e era bastante contemporânea e decidida, escondia seu lado suave, queria vencer. Não é que eu seja machista e esteja procurando uma mulher submissa mas não posso abandonar meus pais e uma mulher que case comigo terá se adaptar a nós e não o contrário, é difícil.
Enquanto isso moro com meus velhos pais, a quem reverencio, porque me deram todos os recursos já que sou filho único e hoje estou satisfeito na vida profissional graças à eles, que me deram as condições.Trabalho, tenho amigos e amigas e muita privacidade no meu confortável apartamento nos Jardins, em São Paulo. Meus pais não me dão trabalho. Ela cozinha, ele lê. De manhã ela vai dar seu passeio, comprar alimentos para um ou dois dias. Ele vai para o terraço cuidar dos seus bonzais. Fui criado neste sereno lar japonês. Nele ninguém grita.
Vou embarcar e me acomodar, depois volto a gravar.
Nada como planejar uma viagem com bastante antecedência porque assim consigo o que quero: poltrona do avião na janela, quarto de hotel adequado ao meu gosto... Não gosto de imprevistos, surpresas, improvisações. Mas se acontecerem, me adapto.
Hospedei-me no Hotel des Marronniers, na rue Jacob. Consegui apartamento no quarto andar onde tenho sossego total, vista para o jardim, os telhados de Paris e a Torre da Igreja de St.- Germain-des-Prés. Gosto deste bairro, quartier como se diz aqui. Posso ir à pé aos museus que quero ver dessa vez: o Musée d’Orsay, o Musée de l’Órangerie e, claro, o Louvre. Vim só pelos impressionistas. Mas posso deixar de ir ao Louvre. Tenho uma amiga que diz que cada vez que vem a Paris entra correndo no Louvre, olha a Mona Lisa e vai embora. Como bom japonês eu sorrio, compreensivamente, mas tenho que me controlar porque, para mim, o Louvre é museu para se ficar vendo por um ano, ao menos, e se fôsse possível, levar um colchonete e dormir lá dentro para não perder tempo. Admito que as viagens estão mais curtas e apressadas, como tudo em geral. Como não saber disso morando em São Paulo? Porém minha origem me salva de adotar o stress como norma. Está na minha genética o retraimento, o controle, o desconforto em mostrar demais os sentimentos. É curioso que, para os ocidentais, se você recebe um presente deve desembrulhá-lo na hora, na frente de quem lhe deu e expressar sua alegria; é falta de educação não fazê-lo. Já o japonês não abre o presente na frente de quem lhe deu, seria falta de educação, porque a pessoa pode não gostar do presente que recebeu e seria desagradável que isso transparecesse de alguma forma. Tudo está sendo gravado.
Após descansar pela manhã, no hotel, fui procurar um restaurante no caminho para o Musée d’Orsay, o que não é nada difícil em Paris. Comi bem e não foi caro relativamente à qualidade da comida. Não é preciso ir a restaurantes caros para se comer bem aqui.
Dirigi-me ao andar superior, one ficam os pintores impressionistas e neo-impressionistas. Apreciei Almoço na Relva, de Edouard Manet, Baile no Moulin de la Galette, de Renoir, La Belle Angèle, de Gaugin. Olympia, de Edouard Manet, Camponesa de Breton, de Paul Gaugin, Ninféias Azuis de Claude Monet. Há muito o que ver mas vim pelos impressionistas.
Sentei-me num café e pedi um delicioso doce da famosa patisserie francesa, que apontei com o dedo e degustei com um café. Preciso uma pausa para assimilar o que vi e tecer considerações. Gravando . Porquê o impressionismo me impressiona? Sim, é o que eles queriam, causar uma impressão forte por obrigar o apreciador a participar da obra, quase que a completá-la por vezes. Não fazia sentido, depois do advento da fotografia, continuar retratando a realidade. Tiveram que buscar outros caminhos. A pintura soltou as amarras do realismo, do academismo. Trataram de se preocupar com a luz, o movimento, em pincelada soltas. Bem verdade que a perícia continua presente, quando eles querem, mais em alguns do que em outros. Edouard Manet era muito preciso quando queria. Como na vendedora de bebidas: Un bar aux folies Bergère. O quadro apresenta vários detalhes, não é pintura de preguiçoso, ele trabalhou. Curioso que colocou a moça bem no centro do quadro, o que não é muito estético porém com a sua sombra quebrando a simetria. O quadro do copo com quatro rosas me agrada mais do que a famosa Olympia. Além da transparência da água no copo, os tons das rosas vão descendo do vermelho para o amarelo e a rosa branca, mais perto de nós, formando um conjunto que parece seguir as regras da ikebana, os arranjos florais japoneses: poucos elementos, o sol (o pai), a lua ( a esposa) a terra (o filho) em alturas decrescentes, por questão de hierarquia.
Muito prazer me deu o quadro Pommes et oranges de Paul Cézanne. Tema simples, arranjo que encontra harmonia numa ordem imperfeita, imprecisa. Muito agradável. Quanto à Edgar Dégas, gosto de La classe de dance. De Pierre Auguste Renoir prefiro Danse à la ville do que o mais famoso Bal du Moulin de la Galette. Também gosto de Two sisters (On the terrace).
Dá tempo de ir à pé até o Musée de l’Orangerie. Nã sei se vou ao Louvre e deixo este para amanhã. Daqui para o Louvre é só atravessar a Pont Royal sobre o rio Sena, para a Rive Droite, o lado direito do rio, e à direita, no Quai (Cais) du Louvre, lá está ele.
Não. Deixo o Louvre para amanhã.
No Musée de l ‘Orangerie (Entre o Jardin desTuileries e a place de la Concorde) apreciei Cézanne, Renoir e a série das Ninféias , de Claude Monet. Nas Nymphéas bleus, a distribuição das flores me parece fugidia, leve, induz a entrar na tela. Gosto de Le Bassin au nymphéas, harmonie verte. Um espetáculo que mantém suavidade.
Preciso repousar a vista, sentar um pouco. Processar. Penso em Van Gogh mas não vou falar de girassóis. Gravando. Embora o Amarelo de Van Gogh me impressione muitíssimo. Mas o que mais o representa para mim é Aos portões da eternidade. O desespero deste homem cansado, magro, simples, aos pés da lareira que não aqueciam nem confortavam a sua dor, era ele, Van Gogh. Até mesmo a posição dos pés, que não estão nem para dentro, nem para fora, estão ali, obedientes, aguardando enquanto o homem vive a sua angustia.
Isto me faz pensar no fato das mulheres apreciarem tanto um “homem sensível”, como elas dizem. Prefiro me mostrar calado e prático no trabalho para poder escolher à vontade, senão minhas colegas descomprometidas vão querer se casar comigo...
Gauguin era mais extrovertido. Penso que ele não sofria, nem era equilibrado. Ele era prático. Sua mão é mais pesada, acho eu. A mulher de azul me parece bem agradável e pergunta com a pose e os olhos “Quando é que isso vai acabar, quero beber água, ir ao banheiro, qualquer coisa”. É Gauguin.
Vou direto para o Palais de Tokyo, jantar no Tokyo Eat. Desço no metro Alma, em Chaillot, para a esquerda, pela Avenue de New York e lá estou. Na volta desço no metro St.-Germain-des-Prés e ando à pé até o hotel, na rue Jacob.
Quando chegar em casa, em São Paulo, guardo a gravação em CD na gaveta, ainda cabe, catalogada como viagem à Paris, maio 2011, Impressionistas.Não importa o destino das minhas gravações. Importam as minhas lembranças que guardo comigo durante muito tempo enquanto enfrento o trânsito e a poluição do ar de São Paulo no cotidiano dos dias de trabalho.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

A PORTA BRANCA
Maio 2011

- Maria, avisa pra minha mãe que eu já estou no consultório. Cadê ela. Chama ela aí. Hummm. Diz pra ela me ligar.Tchau.
- Não, é a Maria lá de casa, não é você não. A doutora Cláudia está com paciente? Ok, eu espero.
“Sumiu por trás dessa bendita porta branca, de novo. Estou esperando há uns quize minutos. Se a doutora Cláudia não está atendendo porque não me chama logo, pra acabar com essa aflição? Melhor não. Melhor a Vânia chegar.”
- Fala, mãe. Falo eu? Que que você quer que eu diga? Estou super nervosa, a Vânia ainda não chegou. Se esse exame der positivo eu me mato! Aliás, não, a doença me mata. Eu não quero morrer. Como calma?! Não dá pra ficar calma! Mãe, vou desligar e esperar a Vânia chegar. Eu estou me controlando... Estão tocando a campainha, deve ser ela. Tchau , mãe. Aviso, sim. Ok.Ok. Tchau.
- Caramba, Vânia, já estou sòzinha nessa sala de espera há uma eternidade...
- Aposto que você chegou há uns quinze minutos.
- É. Uma eternidade pra quem vai receber o resultado de um exame que pode ser uma sentença de morte.
- Calma, Suzie. Não somos mais crianças, estamos com quarenta anos e desde garota que você é assim, asustada. Pensa positivo. Quer uma frase batida? Vai dar tudo certo.
- Ah, não, Vânia. “Vai dar tudo certo”, “Tem que correr atrás”e “Com certeza”não dá mais pra aguentar.
- Ha,ha,ha!... Nem bolero de Ravel, Memories, Deixa a vida me levar... Ha,ha,ha... Roda Viva é boa, é muito boa, não acha, Suzie? Ha, ha, ha... Está rindo, Suzie! Bom sinal. Você está mais descontraída.
- Tá bom! Mas respeita os clássicos musicais, por favor. Odeio gente debochada! Não é porque você está aqui esperando um exame que pode me condenar à morte que eu vou te aliviar, nem você sendo minha melhor amiga de infância!
- Caramba, Suzie! Fica calma..
- Você veio aqui pra me dar força ou pra enterrar de vez! Quer que eu entre em depressão? E se o exame der positivo, que que eu faço? Aquela bendita porta branca não abre, que será que a Dra. Claudia e a assistente estão fazendo há tanto tempo?
- Calma, Suzie. Desculpe. Tem razão. Mas não passou tanto tempo assim, só quinze minutos. E você não vai morrer. Tem que pensar positivo, isso tem. Pára de ficar assustada, concentra, firma o pensamento em que você está com saúde, vai, firma.
- É porque não é com você. Fácil falar. Tantos lugares que eu queria conhecer... Sempre adorei viajar, já que a gente não casou, né sister.
- Casar com quem? Os homens estão todos casados... Não vou dizer o resto que é “polìticamente incorreto”. Eu queria voltar a Bonito. Voltar ao Pantanal. E você, Suzie?
- Eu queria ir pra Porto de Galinhas.
- Mas você é totalmente urbana, quer fazer o quê em Porto de Galinhas?
- Com aquela infra-estrutura toda, meu bem, porque não? Só por uns dias. Também queria conhecer São Luis do Maranhão e talvez Recife e Olinda.
- E o exterior, Suzie?
- Estou fora. Aliás estou fora de tudo, do planeta, da vida, se o exame não vier bom, quando é que essa maldita porta branca vai se abrir?
- Melhor dizer bendita, Suzie. Calma. Você estava distraída e voltou pra expectativa. Que situação! Não sei mais o que dizer. Já estou perdendo o controle, eu é que vou ter um ataque do coração, já, já...
- Nem posso te oferecer um copo d’água, Vânia, a garota não aparece... Pra quê que aquela Betty Friedan queimou soutiens, lá nos anos ’60? Nós continuamos tão... frágeis!
- Ôxi, Suzie, qualquer pessoa fica frágil numa situação dessas, não retroage. Contemporânea, se faz favor...
- Sei. Se eu tiver tempo...
- Está chamando, Suzie. Quer que eu vá com você?
- Não. Fica aí.
.........
Suzie voltou com um sorriso nos lábios. O exame deu negativo. Alisou a porta branca, deu beijinho e pediu desculpas por tê-la chamado de maldita. Olhou pra Vânia, com aquele olhar de cumplicidade amiga que partilhavam durante tantas décadas e disse: Vamos viajar!

domingo, 22 de maio de 2011

A ALMOFADA COR DE ROSA


- Doutor, não consigo entender como essa almofada cor de rosa aparece reiteradamente nos meus sonhos!
- Calma, não quer sentar primeiro, ou deitar no divã?
- Já estou sentando, obrigado.
- Você parece muito ansioso. Vamos recomeçar com essa questão da almofada cor de rosa. Quando foi que começou isso mesmo?
- Há dois meses.
- E... Aconteceu alguma coisa importante há dois meses atrás? Tente se lembrar.
- O senhor me pergunta isso em todas as sessões! Eu não sei dizer, não me lembro de nada marcante...
- Pense mais, tente um pouco mais...
- Não houve nada, doutor, já cansei de pensar.
- Então alguma coisa, algum objeto cor de rosa que tenha aparecido no seu dia, naquela época...
- Há dois meses atrás?
- Sim, tente...
- Huum... Nada...
- Mas...
- Espera! Teve um lance da minha mulher tirar um papel cor de rosa do bolso... Sim, isso aconteceu.
- Descreva melhor a situação, por favor.
- Bem, a gente se encontrou pra almoçar, no centro da cidade e ela tirou um papel cor de rosa do bolso, riu e não disse nada.
- E você, não perguntou nada?
- Não, nem me toquei. Ela vive escrevendo bilhetinhos nesses papeizinhos afrescalhados, essas coisas que mulher gosta... Hello Kitty, sei lá.
- Peraí, mas a tua mulher já é grandinha pra gostar de Hello Kity, quem gosta disso é minha neta! É isso mesmo, ela gosta disso?
- É frescura de mulher, doutor. Bloquinhos, coisas assim. É claro que ela não usa pulseirinha, blusinha, bolsinha de Hello Kitty, era só o que faltava! Isso até me chateia porque quando quero escrever um bilhete qualquer, vou procurar nas gavetas e só acho bloquinhos e papeizinhos de Hello Kitty , cor- de- rosinhas. Já disse a ela mas ela disse que se eu quero bloquinhos eu que compre os meus.
- Mas, então , volte para os sonhos. A única pista que você tem são esses bloquinhos que lembram a almofada porque têm a mesma cor. É isso?
- O senhor é quem sabe! Eu não vejo relação nenhuma entre uma coisa e outra.
- Mas existe uma. Vamos tentar esse caminho. O bloquinho, ou melhor, o papelzinho cor-de-rosa que sua mulher tirou do casaco e recolocou ficou sendo uma coisa oculta pra você. Algo que você diz não ter se interessado na hora porém que você percebeu. E a almofada que aparece nos sonhos não deixa de ser oculta porque você não sabe o que é, do que se trata, certo?
- É mesmo! Pode ter relação, sim, uma coisa com a outra. Mas ainda não faz sentido pra mim.
- Quanto mais pra mim que não sonho com almofadas cor-de-rosa! Estou brincando. Mas me diga, de que tamanho é essa almofada cor-de-rosa que aparece no sonho?
- Caramba, doutor, dois a zero pro senhor. A almofada é do tamanho desses papeizinhos que a minha mulher usa pra anotações.
- Pequena assim?
- É.
- Bem, poderia ser uma almofada dessas que as mulheres usavam antigamente pra segurar alfinetes enquanto costuravam mas isso não é do seu tempo nem do tempo da sua avó. É do tempo da minha avó, no máximo. Talvez da minha mãe...
- Quem falou? Tem um lance, sim. Me lembro. Vagamente mas me lembro, caramba... Quando eu era pequeno e às vezes ficava com a minha avó, eu ficava brincando no chão, aí a gente ouvia o barulho de porta e era o meu avô chegando. E quando ele entrava minha avó fincava sempre um alfinete na almofadinha cor-de-rosa... É isso... Engraçado que ela sempre fincava um alfinete bem na hora que ele chegava, como se ela estivesse com raiva mas não quizesse dizer nada.
- Hum... Interessante. Será que, talvez, é só uma hipótese, que talvez ela fizesse isso porque poderia ter algo de misterioso na vida do seu avô e que ela se recusava a saber? Mas talvez intuísse que boa coisa não era, pelo o menos pro lado dela...
- Como assim? O senhor está dizendo que talvez meu avô tivesse uma amante?
- Pode ser. Hoje em dia as pessoas se separam se não confiam mais uma na outra. Em geral se separam, mas antigamente, no tempo da sua avó, era diferente, certo?
- E o que isso pode ter a ver comigo?
- Será que, pelo o fato de você não ter querido saber do que se tratava aquele bilhete, que a sua mulher tirou do bolso, olhou, sorriu e guardou de novo...será que você não estaria reproduzindo o comportamento da sua avó? Não perguntou porque não quer se aborrecer, não terá sido isso?
- Mas, peraí, doutor... Deixa eu pensar... Bem, eu confio na minha mulher.
- Será?
- Acho que sim! Não acho que tenha motivos pra desconfiar dela, nosso casamento é ótimo, normal...
- Quantos anos de casados mesmo?
- Quinze, doutor. Não é pouca coisa. O pessoal está se separando muito antes disso. A gente até tem dificuldade de manter casais de amigos porque de repente tudo muda e é um cano pra nós, pros amigos em geral.
- Voltando ao assunto... Seu casamento é normal mesmo? Olha que quinze anos é o tempo limite tipico do “ou vai ou racha”.
- Por quê?
- Porque nos primeiros três ou quatro anos o casal está curtindo a novidade do casamento, nos seguintes está curtindo a novidades dos filhos. Primeiro um, depois outro, às vezes o terceiro.
- Quê isso, doutor, ninguém taí pra ter mais de dois filhos hoje em dia, pelo amor de Deus.
- Vá la que seja. Ainda assim vem o periodo do bebêzinho bonitinho, o irmãozinho ou irmãzinha, viram crianças... até que começam a ficar adolescentes chatinhos, com onze, doze anos, o casal com seus quinze de casados mais ou menos... Enfim, generalizando, para alguns parece que tudo perde a graça ao mesmo tempo nessa época.
Que você diz sobre o seu casamento? Está perdendo a graça?
- Olha, doutor, se está ou não eu não sei dizer mas que é essa a fase
que estamos vivendo em relação a filhos, etc, isso é mesmo.
- O que quer dizer etecetera?
- Bem, no caso é que estamos transando menos mesmo, é verdade.
- Mas você perdeu o interesse pela sua mulher ou tem atração por
outras?
- Atração a gente sempre tem, né, doutor... Com a oferta hoje em dia...
- Mas você trai a sua mulher?
- Não, isso não. É complicado, dá trabalho... E posso até pegar a
doença. Deixa eu isolar, com licença...
- Então você sente atração pela sua mulher...
- Claro! Ela é muito interessante, não tem dúvida.
- Bem, estamos chegando mais perto em decifrar o enigma da
almofada cor-de-rosa que vem te incomodando... Vamos parar agora.
Continuamos na próxima sessão. Dê-me cá um abraço, como se
dizia antigamente.

O paciente saiu. Voltou para o trabalho , tentou não pensar no assunto, mas volta e meia as novas revelações voltavam à sua mente. Seguiu assim por uns dias.
Pensou em procurar o casaco que ela estava usando no dia em que almoçaram juntos, dois meses atrás, mas achou invasão de privacidade.
Depois reconsiderou e foi procurar o bilhete no bolso do casaco. Não encontrou.
Ponderou que realmente estavam meio hostis um com o outro. Havia uma má vontade no ar. E, se fosse analisar com sinceridade a hostilidade era maior por parte dele.
Ele sempre tentava irritá-la de algum modo. Será que se sentia preso depois de tantos anos? As crianças estavam mesmo chatas. Tanta mulher dando moleza por aí.
Mas a questão não era ele, era ela. Como ela reagia às provocações dele?
Reagia, quase sempre. Ele conseguia irritá-la, o que não é difícil porque as mulheres são facilmente irritáveis. Mas às vezes ela se controlava. Principalmente na rua. Ela bem “lady like”, odiava falta de classe. Disso ele tinha gostado desde o inicio e valorizaria sempre. Pensou em quantas vezes ela parecia se controlar. Ficou emocionado até. Quando ela chegou do trabalho combinaram de almoçar juntos no dia seguinte.
Foram. Quando iam atravessar a rua ele tentou irritá-la olhando para uma mulher vistosa que passava. Puro vicio. Achou a tipinha bem vulgar até mas tinha que irritar a mulher.
Viu que ela puxou o bendito bilhete cor-de-rosa do bolso, leu, sorriu e continuaram.
Agora quem estava grilado era ele. Que p... era aquela?
Não teve coragem de perguntar. O analista estava certo, ele estava fugindo do assunto.
No dia seguinte saiu mais tarde que ela para o trabalho resolvido a achar o tal bilhete, senão no blaser que ela vestira, no lixo, onde pudesse estar.
Foi ao blaser. Achou. Leu. Sentou na cama. Foi como se tomasse um banho de água fria ali mesmo sentado na cama. Sorriu. No bilhete estava escrito : “Lembre-se que este foi o rapaz louco por você com quem você se casou, apaixonada, teve um casal de filhos, formaram uma familia. Com isso não se brinca”. Do lado um coraçãozinho e a rubrica.
Era a cara dela!
CAIXAS QUADRADAS

- Caramba, essa mulher que veio fazer Regressão comigo é uma perua carioca das boas!
Parece ter uns setenta anos e usa esse layout de vinte aninhos, com corpinho supermagro, minisaia, botas (acho que carioca pensa que em São Paulo pode aproveitar pra usar botas!),
a cara recheada de botox, depois de pelo o menos duas plásticas... Como vou aguentar? O que será que essa criatura quer? Qual será o problema dela? Se fôr pra me pedir pra achar a Alma Gêmea dela eu acho que vou ter um treco. Sou espiritualista mas sou humana!... Melhor respirar fundo e atender. Afinal veio do Rio só pra me consultar...
- Olá! Vamos entrar?
-“Essa garota é tão novinha... Será que tem pique pra mim? Meu Deus! Ela deve ter nascido quando eu estava casando... Vamos ver”.
- Então... Daniela. Por que você quis fazer TVP?
- Terapia de Vidas Passadas? Ah, sim. Bem... Me falaram muito bem de você e eu resolvi tentar. Afinal não sou mais tão jovenzinha assim e preciso resolver logo meus problemas, “partir pro abraço”, se é que você me entende...
- Sim, mas o quê te incomoda mais especìficamente?
- Olha, Marcela, pra te ser franca... Vou logo direto ao assunto... Quero encontrar minha Alma Gêmea... Que foi, te asustei? Sim, eu aceito um copo d’água também.
.......
-Posso te fazer uma pergunta, Daniela?
- Gosto que me chamem de Dani.
-Ok, Dani. Você nunca casou? Não acha que já encontrou sua Alma Gêmea, seu parceiro ideal?
- Ora, Marcela, claro que casei. Quatro vezes. Três filhos. Aliás, dois filhos e uma filha. Fora isso já namorei o Rio de Janeiro inteiro (aqui pra nós que ninguém nos ouça) e mais a metade de
São Paulo... Mas não acho que tenha encontrado a minha Alma Gêmea.
- Mas você se apaixonou?
- Diversas vezes... E ainda assim, acho que isso não tem nada a ver com Alma Gêmea, concorda comigo? Aliás, estou te incomodando com meu cigarro porque, sinto muito, mas eu fumo um atrás do outro, não tem jeito...
- Ok quanto ao cigarro mas para relaxar, não é por mim, não vai dar certo... Vamos ter que passar para aquelas poltronas ali e eu vou colocar um CD de música de relaxamento, tudo bem?
- Tudo bem mas você disse que não tinha nada de hipnose...
- Não tem. Só relaxamento. É preciso que você entenda que as respostas não vão vir de mim, vão aflorar de você. É você que tem as respostas pra sua vida, foi você quem viveu outras vidas que estão registradas dentro de você e que só você pode acessar. Eu apenas vou te ajudar, te induzir e te ajudar. Ok?
- Ok. Vamos lá.
.......
- Me diz, Dani, o que você está vendo. Não pensa , sente. Diz logo.
- Caixas quadradas.
- Caixas quadradas. Você está vendo ou só sentiu? Ou foi a primeira coisa que te passou pela cabeça?
- Resposta número três.
- Essas caixas , quantas são?
- São duas.
- Têm cor?
- Não consigo ver.
- Não importa. Consegue sentir de que tamanho seriam essas caixas?
- Posso inventar que são grandes, pode ser imaginação.
- Não corta a energia, Dani, você sabe que tem duas caixas quadradas, não sabe as cores... São grandes.. Quanto grandes? Cabe o quê nelas?
- Numa cabe roupas. Noutra cabe um violino.
- Onde você está ? Essas caixas estão nesta vida de agora, alguma mudança que você fez? Ou ..
- Não são modernas. Não se fazem mais caixas assim. São meio século dezenove... Amarradas com laços enormes. A das roupas com cor- de- rosa, a do violino com amarelo. Eu odeio cor- de- rosa!... Mas estou vendo ou sentindo, sei lá...
- Dani, você não gosta de cor- de- rosa agora, no século vinte e um. Você é uma mulher moderna. Você quer estar sempre na crista da onda, quer estar sempre jovem. Isto é agora. Mas como era no tempo dessas caixas? Você gostava de rosa? Você gostava de música?
- Huum... Parece que eu gostava de rosa sim, rosa forte. Gostava de ouvir música erudita mas não sabia tocar violino. Nunca soube. Agora, então, eu gosto de MPB e Rock.
- Volta pra lá, Dani.Você gostava de música. Quem tocava música?
- Não sei...
- Quem, Dani?
- Daniela. Nesse lugar eu sou Daniela... Estamos saindo do palacete... As caixas estão no salão... Ele ... Ele toca violino... Não sei quem é, não consigo ver o rosto... Eu não tenho nada a ver com século dezenove, dá um tempo!...
- Vamos parar um pouco.
......
- Entenda. Muitas vezes a gente encarna com personalidade oposta à que tinha no passado. Normalmente a gente acessa a encarnação na qual estamos mais interessados. Você foi logo no século dezenove, um palacete, duas caixas, sabe até o que tem dentro. Entenda, Dani. O fato de você ser muito moderna nesta encarnação não quer dizer que tenha sido sempre assim. Pelo contrário. Outros aspectos precisam ser trabalhados , então a personalidade desenvolve características diferentes, muitas vezes opostas.
- Até aí posso aceitar. Mas se esse homem for a minha Alma Gêmea. Que que ele está fazendo no século errado?
- Você é rápida demais. Realmente você não quer perder tempo. Ao que tudo indica você teve vários maridos, vários casos, teve filhos e não sentiu aquele amor pleno que costumamos chamar de amor pela Alma Gêmea. Entendo que você queira experimentar essa sensação e provàvelmente é porque você a conhece muito bem e sabe que é o que dá o maior sentido à vida.
- Mas as mães dizem que não tem amor igual ao materno. Desculpe mas eu não sinto assim. Amo muito meus filhos mas, veja, agora eles estão lá, criados , cuidando da vida deles e eu sòzinha...
- Eu entendo. As mães que me desculpem mas o seu “ feeling” não esta errado não.
Preciso te revelar algo. É que , infelizmente, não são todas as pessoas que encontram sua Alma Gêmea na encarnação que estão vivendo.
- Como? Você está me dizendo que eu me casei quatro vezes, tive vários casos e que nenhum era minha Alma Gêmea e ponto final? “That’s it?” Vou morrer e não vai rolar? Mas então como as pessoas ficam casadas tantos anos?...
- Não estão necessàriamente com suas Almas Gêmeas... É cruel mas é verdade. E podem ser muito felizes e realizadas mas dentro de um certo limite...
- Quê que é isso?!
- É assim. Encontrar a Alma Gêmea em uma determinada encarnação é um privilégio. Às vezes é preciso abrir mão de outros privilégios como dinheiro, por exemplo. Pouca gente abre mão, sabia?
- Peraí. Pra encontrar a Alma Gêmea tem que ser pobre?
- Não. Esse é apenas um privilégio, diga-se de passagem, o mais evoluído de todos. Os dois têm que estar preparados para isso, se não se sentirão tão completos que não farão mais nada na vida além de ficarem ali, se completando. E as pessoas encarnam com um propósito, com uma missão. Elas têm que cumprir sua missão, fazer os seus aprendizados, receber as lições que estão predestinadas para elas.
- E o livre-arbítrio onde fica?
- Fica no dia e hora em que aquela lição será aprendida, pode ser cedo, pode ser tarde. Pode se repetir caso a pessoa nao entenda da primeira vez. Também pode aprender por bem ou por mal. Acredite, sobra bastante livre- arbítrio pras pessoas exercerem.
Quanto à sua busca, que é da sua Alma Gêmea... Se você tem esse apelo tão forte é porque já viveu com ela alguma encarnação, provàvelmente essa do século dezenove.
- Então não vou ter Alma Gêmea nessa encarnação? Vou ter que morrer?
- Nao entendi...Todos vamos morrer, acho. Nao sei se a sua Alma Gêmea vai aparecer pra você nessa encarnação e conviver com você, do jeito que você queria...
- Espera, volta a fita. Você disse, “ todos vamos morrer, acho”. Como “ acha”?
- Isso é um conhecimento que não cabe aqui no trabalho que estamos fazendo. Infelizmente não posso compartilhar com você. Mas você ja deve ter ouvido falar de mundos paralelos.
- Nunca ouvi.
- Bem, vamos continuar.
.........
-Daniela, onde você está?
- Outra vez olhando para as caixas.
- Como você se sente?
- É forte, tenho que voltar o filme um pouco. Primeiro confusa. Depois reconhecendo o chão onde estou pisando...
- Onde você está?
- Numa estrada ladeada por um bosque. Estou entrando por um portão enorme que está sendo aberto pra mim. Vejo o pátio, o lago com o chafariz, o palacete em frente. Passei de confusa à segura. Sei o que estou fazendo, sei para onde estou indo. Subo as escadas. A porta do palacete se abre. Entro no salão. As caixas quadradas estão lá. Duas. Sim, são beges. Uma com roupas dentro, amarrada com fita cor- de- rosa forte e a outra com laço de fita amarelo, a que contém o violino. Viro para a sala e, de costas, sentado em uma poltrona está um homem. Ele usa cartola. Ele se levanta quando eu entro . Vou ver seu rosto... Não vejo. Só sinto uma enorme felicidade. Ele estava esperando por mim para irmos embora. Para algo feliz, talvez uma viagem, não sei.
- A sensação?
- É de felicidade. É de reencontro. É de quem foi se despedir dos arredores e voltou para viajar com a sua Alma Gêmea... Estou cansada agora.
- Vamos parar.
.......
- Marcela, fala sério. Tudo bem, eu vi o que eu vi, eu senti o que eu senti. Eu vou pagar o combinado pelas horas que você perdeu comigo. Mas... Isso pode ser tudo da minha imaginação. Eu estava consciente o tempo todo, posso ter inventado tudo isso tranqüilamente...
- Você acha? Sinto muito mas é só o que posso fazer por você.
.......
-“Engraçado... Com essa confusão na ponte aérea preferi voltar de ônibus para o Rio. Acho que só fiz isso uma vez, quando jovem.
Daniela... Me senti bem, pela primeira vez, como Daniela. Que incrível! Depois de tantos anos... Pra falar a verdade, tantas décadas... Ei... O que é aquilo, aquele bosque... Será que vou dar uma de louca? Vou. Vou sim. Já passei da idade de me preocupar com o ridículo. Vou mandar parar esse ônibus e descer agora, não quero saber.

.......
- Sim. É Marcela, pois não? Sim, eu atendi a Dani há três dias. Ela disse que iria voltar para o Rio no mesmo dia. Não tem registro nas companhias aéreas? Bem... Está tudo tão bagunçado... Ela não tem alguma amiga em São Paulo? Ela telefonou e disse que estava voltanto? ... Mas não chegou?... Não sei o que dizer... Ela foi atendida por mim, sim. Estava normal, sim. Não houve nada. A recepcionista viu ela sair, até pediu um taxi de cooperativa pra ela. Posso lhe fornecer o nome da cooperativa. Um instante.
...... Espero que consiga localizá-la e que esteja tudo bem. Você é a filha dela? Sei. E ela nunca sumiu antes? Bem, então é preciso ter calma porque ela há de aparecer. Por nada. Boa tarde.

“Meu Deus! Afasta de mim esse cálice. Me livra de qualquer resposabilidade nisso daí. É muito raro acontecer. É caso de um em um milhão... É preciso que a pessoa tenha muita vontade e seja muito audaciosa... Como a Dani”.

terça-feira, 17 de maio de 2011

PÃO DE AÇUCAR
Maio, 2011

Resolvi conhecer o Pão de Açucar. Afinal moro no Rio de Janeiro desde que nasci, há vinte e três anos e nunca fui lá. Parece brincadeira! Rafael, enfim foi ao Pão de Açucar!
Hoje, na hora do almoço, no meio do expediente de trabalho, eu fui. Ainda bem que sobrou um pouco dessa miséria de salário que eu ganho mas quem mandou querer ser professor, bem que me avisaram! Meu pai queria que eu fôsse médico mas só de ver sangue fico querendo desmaiar. Minha mãe sempre disse que eu teria que fazer algo que gostasse muito porque trabalhar no que não se gosta é a morte em vida. Na verdade, como acho que tenho alma de artista, queria ser artista plástico. Mas, nas artes, um em mil vence. E se eu aprendesse todas as técnicas e depois os críticos dissessem que eu não era bom? Não quis arriscar. Resolvi estudar letras, português-alemão. Dá pra viver dando aulas e fazendo traduções. Muita gente agora quer aprender é chinês mas , parodiando um amigo, “A vida é muito curta pra aprender a falar chinês”. A lingua alemã é difícil mas tem quem queira aprendê-la e não tem tantos professores como os de inglês e francês. Além disso é a lingua de muitos dos maiores filósofos da humanidade. Fico próximo do meu campo de interesses culturais. Não dá tempo é de pintar nenhum quadro. Aliás não dá tempo nem de pregar um prego pra pendurar um possível quadro na parede. Tenho que estar sempre trabalhando e me aperfeiçoando para valorizar meu diploma.
Na fila pra comprar meu ingresso nos bondinhos tive um pouco de pena da Isa. Isadora, minha namorada. Não quis trazê-la. Queria ficar só. Tem experiências que eu quero passar sòzinho. Não dá pra ter insights preocupado com a Isa, que vai me perguntar as horas, dizer que está com fome, localizar a Lagoa Rodrigo de Freitas... Me deixa. Eu quero sentir tudo sòzinho, ter meus insights, foi o que pensei.
Já no primeiro bondinho, aquelas duas comadres batendo boca porque as duas queriam segurar na mesma pilastra, já que o bondinho balança um pouco. Pelo-o-amor-de-Deus, discutir com estranhos por uma bobagem, num passeio... Foco. Deixa elas pra lá que eu quero curtir a minha experiência.
Ir subindo. Que coisa isso de ir subindo. Sempre achei meio bobagem as pessoas subirem num lugar, igual a cabrito, pra apreciar a paisagem. Pensei que a experiência era meio...vazia. Mas não. Subir é incrível, o ponto de vista vai ampliando. Ter uma visão aérea das coisas é bem bom, amplia a visão, fornece um panorama mais inteiro sobre tudo. Claro que o google map e os jogos me dão isso mas ao vivo é outra coisa. Ainda não tive grana pra viajar de avião. Medo, eu? Da altitude ou do balanço, ou será que essa coisa vai cair? Não, nenhum.
Do morro da Urca olhei tudo. O bairro da Urca, todo quadradinho, certinho, alí. Um bairro inventado, um aterro. Será que a cabeça das pessoas de lá também é quadradinha, certinha, militar como o Forte de São João? Claro que não. Tem todo o tipo de gente em todos os lugares: os certinhos e os desencanados, os bom caráter e os perversos, os honestos e os canalhas. Não esquecer que os canalhas também envelhecem. Mas não vou me ligar no lado difícil da vida. Vou pensar em quantas pessoas comuns, normais, sadias, moram alí e alí são felizes no seu cotidiano. Com certeza é bairro pra quem quer sossego. Prefiro o caos da Tijuca dos dias de hoje, estou acostumado, pra mim não dava. Mas a Urca é bem bonitinha vista daqui.
E fui ver o outro lado. O mar. A amplidão. Mundo, vasto mundo. A água do oceano Atlântico que está aqui em baixo é a mesma que está la nos Estados Unidos e também lá na Europa. Não é a mesma molécula mas é a mesma água, não é? Muito abrangente. Acho que o bairro da Urca é igual a um cachorro, leal, fiel, sempre igual. E o mar é igual a um gato, gato não tem limite, se soltar na janela ele vai. Eu penso o que eu quiser. Muito bom esse ar puro.
Achei tudo limpinho e bem cuidado.
Subi mais. Outro bondinho, para o morro Pão de Açucar. Depois vejo no google a história, porque se chama pão de açucar mas o formato já dá a entender. Doce porquê? Sim, é doce. O ar aqui em cima é doce. Tem brisa não tem vento, muito bom. Nem vem com essa de que brisa é coisa de mulher e vento é coisa de macho. Eu sou macho e gosto de brisa.
Valeu. Senti. Curti. Agora entendi porque as pessoas curtem. A sensação é agradável mesmo. Não sou chegado a esportes radicais. Pra muita gente isso aqui já é uma experiência radical. Minha tia não viria aqui de jeito nenhum! Tenho que trazer a Isa aqui.
Desci. De volta pra realidade. Sou um outro Rafael? Já não mais o mesmo que subiu? Acho que sim. Dei mais um passo, fui mais adiante nessa experiência de ir desembrulhando a vida. Recomendo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Comentário

Sobre o filme francês: Des hommes et des dieux (homens e deuses).
Achei pena ter lido a crítica da revista Veja sobre esse filme porque ela me predispôs a ver um filme chato e com cenas de violência (do tipo ação) e não é nada disso.
O filme é calmo mas nem se pode dizer que é lento. Também não é hermético, au contraire, é bastante claro nos diálogos e narrações. O filme é muito bonito, a fotografia é belíssima o tempo todo. As cenas de violência são mais insinuadas do que mostradas, são pontuais e não causam nervosismo ou repulsa.
É importante saber que se baseia em fatos reais ocorridos na Argélia em 1996, portanto relativamente recentes e que os dois aspectos mais relevantes são o ecumenismo, ou seja, a relação de atendimento dos monges à população local islâmica, levando socorro às populações carentes do mundo sem tentar impor a crença católica e a falta de opção de inúmeras populações do mundo diante da violência em suas terras natais devido às lutas pelo poder; não podem sair (A não ser por perversos esforços de imigração para o primeiro mundo) e nem podem ficar ( Em condições mínimamente aceitáveis de sobrevivência, no meio da violência, sem hipótese de progresso em suas vidas.)
Importante também saber que a ordem trapista cisterciense tem um quarto voto, além dos votos de castidade, pobreza e obediência. É o voto de permanência, que significa que eles não podem sair dos mosteiros em que vivem até a morte a não ser por ordem especial . No caso do filme isso se torna relevante porque eles decidem ficar, não só pelo voto que fizeram mas porque consideram a população local indefesa sem a presença deles. Portanto sair não seria uma solução fácil, o que esvaziaria ou tornaria artificial a proposta primeira do filme, ou seja, porque simplesmente não foram embora?
Tendo posse dessas informações o conteúdo do filme - deixando de lado as considerações políticas e econômicas quanto ao horror da violência, da miséria, pobreza e injustiça social em que boa parte da humanidade tem que sobreviver- se volta para o aspecto da alta espiritualidade que permeia o filme do começo ao fim, mostrando ao público, o que é, em pleno final do séc XX, optar por uma vida quase que anacrônica, nos tempos iniciais da internet que tanto mudou a face do mundo, uma vida vivida em castidade, pobreza e comunitária cumprindo tarefas simples necessárias à sobrevivência, lidando com o alto poder de vibração energética que possui a oração constante e ao mesmo tempo servindo mundanamente ao próximo pelas tarefas de caridade.
Curioso o aspecto exotérico de serem oito os monges, já que o número 8 deitado é o simbolo do infinito. De se observar também que as orações cantadas e não simplesmente faladas geram uma energia mais poderosa a serviço do Bem. Outra referência simbólica que não sei se percebi corretamente, foi quando o monge médico, após um desabafo em que faz um resumo de sua situação, passa a mão por uma pintura realista e leva seu dedo até a chaga de Jesus, onde Ele levou uma flechada. A mesma chaga em que o apóstolo Tomé quis pôr o dedo para acreditar que Jesus tinha realmente ressucitado, ou seja, o monge não estava “acreditando” naquilo que eles estavam passando naquele momento de 1996. Outros simbolismos esotéricos próprios da ICAR, de conhecimento dos monges e dos teólogos eu não saberia explicar, como o fato de rezarem, por vezes,se posicionando em forma de ferradura ou “u” mas acredito que nada seja gratuito nos rituais.
Adorei o filme, por ser calmo, belo, espiritualmente elevado, de fácil entendimento, que conta uma história com muita clareza e sobretudo baseado em fatos reais. Muito bom, nada chato.