sexta-feira, 30 de julho de 2010

Amiga, não se ofenda

Você, que acha que faltam homens na praça, que eles têm medo de mulheres preparadas, que não são as mulheres que estão exigentes...
Você, que veio do interior de Minas e desprezou a menina jeca para ser uma carioca bonita, inteligente, culta, com faculdade, pós-graduação, falando línguas estrangeiras, com um bom salário, achando que assim você teria mais chances de se casar com um homem interessante, preparado e rico, diferente do seu vizinho...
Mas você ainda não encontrou a sua alma gêmea. O relógio biológocio está tocando, os anos estão passando... Onde estarão os homens?
Talvez eles estejam bem aí, passando na rua ao seu lado. Eles te olham, constatam que você é bonita, tem cabelos bem tratados, está bem maquiada, bem vestida, tem cara de inteligente. Está apressada para o trabalho, provàvelmente bem remunerado...
Ele olha e passa. Ele não vai te parar pra perguntar que horas são, é muito brega. Ele também é preparado. Ele não vai te pedir um cigarro. Você, tão perfeita, provàvelmente não fuma. Ele também não. Quem sabe você aparece um dia na internet, pela Lei da Atração. “ Quem sabe seremos apresentados, afinal , no Rio, todo o mundo se conhece...
Quem sabe, melhor não. Não estou a fim de mais uma deusa. Estou procurando uma mulher.”
Você se defende acreditando que eles têm medo de você, afinal você adicionou tantas camadas artificiais de preparo àquele espírito precário de menina do interior justamente pra ter mais valor de mercado e constata que não tem homens à sua altura.
Segue, altiva, com semblante rígido e meio-sorriso estudado sem perder a fé em que a sua alma gêmea ainda vai aparecer e você vai casar e ter filhos. Seu orgulho e vaidade serão atendidos. Você não é pior do que ninguém, ao contrário, você é superior, é perfeita, só falta provar que você também consegue um homem pra chamar de seu e um filho pra ser criado pela babá porque você não vai largar o que conquistou de jeito nenhum. “Vai aparecer , eu mereço. Me esforcei tanto na vida...”
Sim. Você se esforçou. Você atendeu à todos os trâmites da inteligência. Mas você atendeu ao seu coração?
“Mas eu fiz tudo isso pra conseguir o amor das pessoas...”
Tudo o que você fez serve pra conquistar respeito, admiração e dinheiro. E uma inveja à reboque, das menos preparadas, mas disso você já sabe. Só não sabe que tudo isso não serve pra conquistar amor. Amor é coisa do coração.
“Mas eu não quero um homem grosso, que crie barriga de cerveja e goste de futebol. Eu quero um homem... sofisticado!”
Aceita que ele goste de jogar tenis, ou polo ou golf? Senão, desconfie.
Amiga, os homens também não são bobos.
Talvez, nos anos setenta, eles tivessem medo de mulheres poderosas. Era tudo muito novo. Mas agora, com tantas poderosas, mais provável que pensem: Coitada, tão insegura que pensa que precisa de tantos predicados pra conseguir quem a ame...
Eles querem compromisso. Querem se apaixonar, amar e ter um filho. Mas eles não querem fazer isso com uma deusa. Porque as deusas não perdoam. E eles são humanos.
Da primeira vez que ele olhar pra loura do lado, a deusa vai fazer cara de “Como se atreve; faça suas malas; mande seu advogado falar com o meu para acertar a pensão do Carlinhos.” E lá vai ele... Perde a mulher, e paga pensão de um filho que ele não vai poder criar...
Amiga, não se ofenda.
Use essa mulher poderosa de segunda à sexta para ganhar dinheiro.
No sábado: retire a maquiagem, prenda os cabelos, vista-se com uma roupa esportiva confortável, arrume um cachorro e leve-o para passear na Lagoa.
Quando “ele” passar, não faça cara de inacessível, inatingível. Não fique tentando reconhecer as marcas de grife das roupas esportivas dele. Se ele te convidar pra tomar uma água de coco, aceite. Se ele olhar pra loura do lado, aceite. Mas aceite de coração e pra sempre.
Só aí ele vai saber que você foi buscar de volta a menina jeca do interior de Minas que está louca pra encontrar sua alma gêmea e é com essa que ele vai querer se casar.

Amiga, não se ofenda 2

Vocë, que acha que faltam homens na praça, que eles têm medo de mulheres peparadas, que não são as mulheres que estão exigentes…
Você, que veio do interior de Minas e desprezou a menina jeca para ser uma carioca bonita, inteligente, culta, com faculdade, pos-graduação, falando línguas estrangeiras, com um bom salário, achando que assim você teria mais chances de se casar com um homem interessante, preparado e rico, diferente do seu vizinho...
Mas você ainda não encontrou a sua alma gêmea. O relógio biológico está tocando, os anos estão passando... Onde estarão os homens?
Talvez eles estejam bem aí, passando na rua ao seu lado. Mas porquê haveria de querer um só?
Você é bonita, tem cabelos bem tratados, bem maquiada, bem vestida, inteligente, apressada para o trabalho, quase uma deusa, vai querer um homem só pra quê?
Você adicionou camadas artificiais de preparo àquele espírito precário de menina do interior e agora vai querer casar e ter filhos com um homem que não está à sua altura?
Você se esforçou tanto na vida, tem um excelente salário, pode viajar para onde quiser, tem amigas com quem ir ao cinema, ao teatro, a restaurante; tem uma boa empregada pra cozinhar pra você... e continua com esse sonho jeca de achar a alma gêmea?
Pense bem: você se ama, você se basta, você tem um milhão de amigos e amigas, você faz sexo com quem quer, pode trocar quando enjoar e não precisa ver duas vezes um cara ruim de cama, pelo o menos pra fazer sexo... Talvez seja uma pessoa adorável pra te acompanhar ao teatro... Pra quê se prender? Quem está te cobrando isto?
Você não vai querer se casar com um chato, barriga de chope, que fica vendo esportes na TV e não te dá a menor bola; nem vai querer um cara sofisticado, que jogue polo enquanto você se vira fazendo outra coisa qualquer e depois vai a festas por pura obrigação...
Amiga, todos os homens são uns bobos. Ou safados. Não é melhor levar o bobo ao teatro e o safado pra cama?
Se você se apaixonar, criar compromisso, tiver um filho, OK, é uma fase. Quando a tesão acabar (dura uns dois a quatro anos no máximo) você vai poder partir pra outra sem problemas, afinal os dois ganham bem, são pessoas civilizadas... O filhinho não vai sentir falta de nada. Pior criar criança de cara amarrada, exigências de um tempo que passou.
Amiga, não se ofenda.
Use essa mulher poderosa de segunda a sexta para ganhar dinheiro.
No sábado: retire a maquiagem, prenda os cabelos, vista-se com uma roupa esportiva confortável, arrume um cachorro e leve-o para passear na Lagoa.
Quando “ele”passar, sorria. Se ele te convidar pra tomar uma água de coco, aceite. Se ele olhar pra loura do lado, olhe pro louro do outro lado. De coração.
Se rolar, rolou. Se não rolar, siga em frente, você é independente e bem resolvida, Graças à Deus.
Deixa aquela menina jeca do interior de Minas, lá em Minas Gerais. Vá vê-la vez por outra, nas férias, quando teus amigos forem pra China e você teria preferido Aspen.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

A MAÇANETA

Lembro que virei a maçaneta dourada e redonda com meu paninho e com muito esforço. Eu tinha cinco anos. Consegui. Chamei minha mãe. “Mãe, estou com medo”. Ela veio me atender. Me levou pra cama dela, tonta de sono.
O apartamento em Copacabana continuou sendo minha casa de infância e adolescência. Aquela maçaneta do quarto dos meus pais foi girada diversas vezes por mim, cada vez com menor dificuldade.
Eu tinha mais tempo para girá-la à noite.
Uma vez girei a maçaneta e vi minha mãe deitada de lado, chorando muito, com a luz do abajur iluminando o seu rosto. Entrei e perguntei o que houve. Eu devia ter uns doze anos, nessa época.. Minha mãe se recusou a me dizer. Continuou chorando, sem grandes soluços mas com um choro constante e forte de quem sofre com ritmo, sem gritos e descontroles mas também sem esconder o que sente. Me pediu pra sair, eu o fiz.
Rodei a maçaneta dourada do quarto de meus pais , uma vez, com toda a facilidade – eu devia ter uns dezeseis anos – e vi meu pai largado na cama, totalmente alcoolizado, tentando se levantar sem conseguir. Fechei a porta mais por respeito; porque sabia que se eu entrasse e tentasse ajudá-lo ele jamais me perdoaria por tê-lo visto naquele momento de fraqueza.
Aos vinte e dois anos, meus pais tinham viajado no final de semana. Rodei a maçaneta e entrei com uma linda garota que conheci na praia, no posto cinco. Fizemos sexo a tarde inteira. Aquela garota era tão vulcânica que só uma cama de casal pra fornecer o espaço necessário às nossas peripécias.
Com trinta e dois anos decidi passar um ano viajando pela Europa. Parei tudo: emprego, namoro firme, cursos, e lá fui eu com minhas economias, mochila nas costas e barba por fazer. Valeu. Mas o melhor dia de toda a viagem foi quando girei aquela maçaneta, daquele quarto, daquele apartamento de Copacabana, que fazia parte da minha história de vida. Quando a girei e vi minha mãe recostada na cama, lendo Drummond à luz do abajur, a maçaneta caiu no chão e eu não sabia se prestava atenção a essa peça da casa que sempre me abrigou ou a minha envelhecida mãe a quem já olhava com outros olhos.
Casei-me aos quarenta anos. Minha mulher, já com trinta e cinco anos quis ter um filho logo, devido à idade que já entrava em gravidez de risco se esperássemos mais. Ela, minha mulher, veio morar comigo e minha mãe. Trocamos de quarto e mantivemos o escritório como estava, até a chegada do bebê.
Meu pai já não morava mais conosco e veio a falecer quando João Pedro, nosso filho, estava com três anos de idade.
Quantas vezes girei a maçaneta daquele quarto de casal em Copacabana, porque eu sempre chegava tarde da Redação ou dos bares com os amigos e minha mulher já estava deitada!...
João Pedro cresceu, minha mãe faleceu. Minha mulher e eu nos separamos.
Fiquei com o apartamento.
Até os dezoito anos João morou com a mãe mas depois disso quis morar comigo e não houve nada que ela pudesse fazer.
Ele ocupou o quarto que tinha sido meu, e depois da minha mãe. Agora do meu filho.
Percebi que agora girava duas maçanetas com a mesma insistência: a do meu quarto por ser natural, já que era onde eu dormia quase todas as noites e a do quarto do meu filho, para ver se ele já tinha chegado, fôsse às dez da noite, às três ou seis da manhã ou só no dia seguinte. A vida era dele, que fazer!
Um dia fiquei só.
João Pedro resolveu morar em Madrid com a jovem esposa. Ela tinha parentes lá e queria fazer um curso; ele tinha emprego assegurado, ganhando bem, junto a parentes dela. Foram.
Às vezes eu chegava em casa e, por força do hábito, girava a maçaneta do quarto de João e fechava a porta. Depois fazia o mesmo com o escritório. Só para descobrir que estava só. Aos sessenta e cinco anos estava só.
Girava a maçaneta do meu quarto de casal e nessa hora me perguntava: onde estão todos?
Resolvi me aposentar. Amigos disseram que o apartamento era grande demais para mim e que estava cheio de lembranças. Que talvez eu devesse mudar, sair dali, mudar de ares, olhar para o futuro.
Futuro? Meu futuro jamais seria tão longo e preenchido como havia sido o meu passado. Tudo estava registrado naquelas paredes que eu, inclusive, me recusava a mandar pintar. Não havia tragédias entre aquelas paredes. Só momentos bons e ruins, alegres e tristes, longos e breves – como em toda a família.
Não havia marcas de sangue na maçaneta do meu quarto. Só nos livros que escrevia. A minha maçaneta registrava apenas sentimentos necessários: expectativa, surpresa, alegria de voltar, cansaço ao chegar. Não havia razão para mudar de maçaneta, ou de quarto ou de apartamento. Ou de bairro. Copacabana do começo ao fim.
Meu médico me recomendou que usasse uma bengala para facilitar meus movimentos. Não que seja fundamental mas que já seria o caso.
Comprei uma bengala. Entrei em casa e não sabia o que fazer com ela, onde pendurá-la. Fui até a porta do meu quarto e pendurei a bengala na maçaneta. Me afastei para ter uma visão mais fotográfica. Foi quando me lembrei do paninho que sempre carregava nas mãos até os cinco anos de idade, de quando este paninho ficou preso na porta e eu me virei, deste mesmo lugar onde estava e tive esta visão fotográfica do paninho pendurado na maçaneta. Agora era a bengala. Era a mesma porta, a mesma maçaneta, o mesmo chão, a mesma perspectiva... E o mesmo menino. Com camadas e camadas de outras idades separando aquele paninho daquela bengala.
Não saio daqui. Aqui estou bem. Continuarei a girar esta mesma maçaneta até quando...

MEU ADVOGADO

- Ai, que stress!
- Por favor, Adriana, poupe-me dessas expressões pra lá de gastas! Stress, stress, que que é isso, afinal?
- Ai, não sabe o que é stress, não? Eu não sei outra palavra, pitomba!
- Eu te ensino, criatura: que desgosto, que maçada (não, essa é muito antiga pra você), que nervosismo, que desgaste, que situação difícil. Pegou?
- Quê?
- Eu perguntei se você entendeu.
- Ah, bom. Você falou pegar... pra mim pegar é outra coisa.
- Você falou, não. Você disse.
- Quê?
- Deixa pra lá. Vê se entende que se você parecer vulgar desse jeito o juiz não vai te respeitar nem te dar crédito.
- Como assim?
- Céus! O juiz não vai acreditar no que você diz. Não vai acreditar na sua versão dos fatos, percebeu?
- Deu pra entender. Mas o que que você quer que eu faça? Aprenda a falar igual a você, com esse jeito todo empolado senão o juiz vai achar que eu não tou falando a verdade? Que p... de juiz é esse que saca as pessoas pelas aparências? As aparências enganam, sabia disso?
- Sabia, Adriana.
- Essa eu aprendi por aí. Algum cara meio culto, sei lá.
- Adriana, você não está entendendo a seriedade da tua situação. Prostituição é crime e temos uma suspeita de homicidio pra piorar muito as coisas.
- Mas eu não sou prostituta. Eu dou pra quem eu quero. Se o cara tem grana e resolve me recompensar, ainda mais sendo gringo... que culpa eu tenho se o cara quer me agradecer, me agradar, qual é?
- Você tá me dizendo que não bota preço, pra falar a tua lingua, é isso?
- É, ué.
- Mas você fica num bar de calçada de rua, na avenida da beira mar, sentada com umas amigas parecidas com você, tarde da noite, vestida com roupas provocantes, aceita ir pra cama com um estranho, que mal fala português, e ele não te pergunta quanto você cobra?
- Peraí! Que que tem beber e conversar com as amigas? Que que tem meu modo de vestir? É igual a qualquer garota da minha idade, qual é?
- Mas o sujeito não te pergunta quanto você cobra?
- Olha cara, até pergunta mas eu só vou quando eu quero, quando eu acho o cara legal, se ele não tiver bêbado nem drogado.
- Responde, Adriana. Ele te pergunta quanto você vai cobrar?
- Até pergunta.
- E?
- Ah, eu digo que não é por aí, que eu gostei dele, que não tem nada a ver.
- Mas o que você pretende, afinal?
- Como assim?
- O que você espera do cara, desses caras, dessa vida que você leva?
- Olha, cara, no fundo, no fundo, eu queria mesmo era casar com um gringo desses, ir morar na Europa, levar uma vida de luxo, de primeiro mundo, como se diz por aí.
- Mas, Adriana, você acha mesmo que algum cara que te leva pra cama no primeiro encontro, vai casar com você e te dar uma vida de luxo no estrangeiro?
- Nunca se sabe, ué. Já rolou com amigas minhas.
- Você teve noticias delas, Adriana?
- Não. Só uma ou duas.
- E?
- E que uma tava trabalhando de garçonete, não deu certo, sabe? E a outra, nem me lembro... Mas acho que também não deu certo.
- Adriana, presta atenção. Nós temos dois problemas aqui. Um, provar pro juiz que você não é garota de programa...
- Não sou não..
- Tá, calma. Dois, é provar que você não teve nada a ver com a morte dele. Que o sujeito teve um ataque de coração na hora H, em cima de você.
- Foi isso mesmo. Eu gritei muito, foi horrível.
- Eu sei, calma. Os hotéis não gostam de escândalos e te deram calmantes. Isso é bom porque se você estivesse num apartamento com o sujeito, ia ser muito pior pra você. Além disso os exames vão comprovar que o sujeito, que já não era novo, teve um ataque de coração.
- Ah é?
- É. Mas eu preciso que você vá às audiências bem vestida, sem decotes e micro-saias. Muda essa cor de cabelo pra um tom mais natural, menos vulgar. Vou te dar o endereço do cabelereiro e grana suficiente pra você chegar na loja onde uma moça vai te orientar sobre o que vestir. OK?
- Como assim? Que esquisito... Eu não vou presa e ainda vou ganhar roupas e cabelereiro de grátis?
- Valha-me Deus! Por enquanto, Adriana. Mas tem mais. Você vai receber algumas aulas de boas maneiras e aprender como falar com o juiz e o que responder, entendeu?
- Vou ter que decorar texto, igual às celebridades da Globo?
- Não é bem decorar, senão vai parecer falso. Você vai aprender o que dizer, ok? E fecha o bico, tá ok?
- Sei lá se tá ok. Eu tô falando a verdade, você entra nesse quarto de hotel e me diz pra fazer uma porção de coisas falsas que aí vai ficar legal... Tudo bem! Você que é o advogado.
- Agora vai, que já está amanhecendo. Telefona amanhã pra mim, às dez. De orelhão, o que for.
- Eu tenho celular, cara. De cartão mas tenho.
- Então tá. Me liga sem falta. Eles vão te levar em casa.
- Pode deixar que eu não vou fugir.
- Tá bem mas eles vão te levar. Tchau.

Acompanhou com os olhos aquela garota que saía. Pobre, burra e pretenciosa. Ingênua, metida a esperta, verdadeira. Produto dessa sociedade que aí está.
De quantas meninas iguais a essas ele ainda teria que “livrar a cara”, como já tinha livrado de tantas?...
Um trabalho que era sempre regiamente pago pelos hotéis.
Com esse dinheiro ele podia comprar a melhor educação para suas duas filhas. Era a lei.

Seixos

Na cidade de Yugan (rocha quente), no reino de Kawakai (rio agradável), vivia uma princesa chamda Hirakusora (Luz do Céu).
Ela era filha única dos reis do lugar e por isso tinha um pequeno defeito: era muito exigente. Mimada seria a palavra mais correta.
Numa manhã Hirakusora acordou e foi sentar-se nas escadarias do palácio, em frente ao lago.
Enquanto suas amas preparavam suas vestimentas apropriadas para a parte da manhã e seu mingau, ela escapou para as escadas para pensar o que faria naquele dia.
Bem sabia Hirakusora que teria coisas das quais não poderia escapar: trocar de roupa três vezes ao dia – uma para a parte da manhã, outra para de tarde e outra para de noite, fora a roupa própria para dormir. As cores da manhã eram vibrantes, com tons de amarelo e vermelho, também rosa forte de flores miúdas, para animá-la e fazê-la ficar disposta para passar a manhã. As vestes da tarde tinham tons de azul, verde e roxo, com detalhes em lilás, para fazer com que se concentrasse naquilo que deveria aprender. As vestes da noite eram brandas, em tons de cinza claro ou beges para que fosse se acalmando para a refeição noturna e para o sono da noite, a não ser que fosse dia de festa, quando era permitido muitos vermelhos , dourados e fios brilhantes.
Durante a manhã poderia passear pelos jardins e fazer o que quisesse, o que era mais ou menos quase nada, segundo sua opinião, ou seja, passear pelos jardins e praticar artesanato livre. À tarde estava sujeita a uma disciplina rígida que compreendia aulas de etiquetas, cerimônia do chá, ikebana, caligrafia e palestras sobre diversos assuntos a respeito do Reino, desde religião até política e diplomacia. Ela não precisava aprender a limpar um palácio, cozinhar ou cuidar das vestimentas mas precisava aprender o bastante para saber mandar. “Quem não sabe fazer, não sabe mandar”, ensinaram-lhe seus mestres.
Sua mãe era um pouco distante porque além de ter que cuidar de si mesma para estar sempre muito bem apresentada junto ao rei, seu marido, ela tinha que literalmente viver para agradar ao marido. Deveria viver em função do marido e jamais em função dos filhos, mesmo que tivesse muitos filhos, o que não era o caso.
Seu pai era mais distante ainda, embora lhe chamasse sempre de querida princesinha e a pusesse no colo sempre que possível, mesmo já sendo uma moça quase em idade de casar. Agora que completara quinze anos teria que casar. Já estavam providenciando um marido para ela em outros reinos. Pedia aos céus que não fôsse um reino muito afastado porque gostava de Kawakai e principalmente de sua cidade, Yugan, onde havia um lindo rio com muitos seixos.
Tomou seu mingau ali mesmo, olhando para o rio enquanto pensava no que fazer durante aquela linda manhã. Estava, porém, preocupada e assustada com o casamento que se aproximava.
Como era uma moça exigente, resolver impôr aos pais uma condição ao noivo, para que ele fosse o escolhido. Logo caiu em si e se lembrou que ela é que teria que ser escolhida e que desse graças aos Céus se conseguisse um marido naqueles tempos de tantas guerras e tão poucos principes que sobravam para casar com as princesas que ficavam protegidas em seus castelos, como ela.
Mas ela queria fazer uma exigência. Sismou que faria alguma exigência naquela manhã e portanto tratou de inventar enquanto tomava seu mingau.
De repente algo lhe ocorreu. Exigiria, naquela manhã, seixos muito redondos par a pintá-los como peso para papéis. Sim. Não podiam deixar de atender à sua exigência porque, afinal, era-lhe permitido fazer arte livre pela manhã e o dia da troca de presentes estava se aproximando. Era um dia como o Natal dos cristãos do qual ela já ouvira falar.
Comunicou seu desejo às amas, que ficaram intrigadas com tudo, inclusive com o fato de que ela queria seixos muito redondos. Umas das amas, a mais velha, ainda se atreveu a perguntar se os seixos não poderiam ter formatos variados, já que eles são assim por natureza e seria muito difícil achar seixos bem redondinhos. Mas a princesa a olhou com desprezo e insistiu. Bem redondinhos. Perfeitos. Ela era exigente e pronto. Não era isso que ouvia todos dizerem a seu respeito deste que nascera? Então, ela era assim como a definiam: perfeccionista e queria seixos perfeitos.
Sem perda de tempo as criadas chamaram o velho sábio pescador para ajudá-las a resolver a questão porque o sol já ia alto.
Ooita recrutou quarenta homens e mulheres que se dirigiram sem demora para a beira do rio à procura de seixos perfeitos. Hirakusora declarou que só pintaria quatro naquela manhã mas que precisava escolher os mais perfeitos, aliás os absolutamente perfeitos e que portanto eles que não demorassem a trazê-los ou teriam que prestar contas a seu pai, o que poderia significar a pena de morte.
Matava-se por tudo naqueles tempos. Isto estava, inclusive causando um problema social porque os homens morriam nas guerras para defender o reino ou por acusações singelas como esta de não cumprir corretamente a ordem da princesa. Assim as mulheres ficavam sem maridos e o reino em defesa. Seu pai não iria gostar nada desta estória mas ela bateria o pé até conseguir o que queria, como sempre. Afinal, era o único meio de divertir sua alma ao longo de todos estes anos em que tudo era previsível: sua infância, juventude, casamento e velhice. Até morrer. O que haveria de surpreendente, de aventura em sua vida? Quase nada. Porisso era preciso criar. Será que conseguiriam míseros quatro seixos perfeitos para que ela pintasse agora pela manhã? Que divertido! Enquanto isso prepararia a mesa, as tintas e os pincéis.
Quase uma hora se passou enquanto quase todo o reino enlouquecia tentando cumprir o capricho da princesa. Quem não procurava seixos perfeitos, comentava sobre isso. Até com os viajantes.
Seu pai chegou a achar divertido tudo isto porque não via um alvoroço daqueles na cidade há muito tempo. A monotonia de suas vidas só era cortada com notícias das guerras, de sangue e de morte. E afinal de contas ele não iria condenar ninguém à morte por causa de mais um capricho da princesa, ora essa!
Por sua vez a princesa, enquanto arrumava o material para pintar os seixos que sabia que chegariam dava asas à sua imaginação. Começou a acreditar que aquele que encontrasse os seixos seria o dono do seu coração. Bem, não exatamente aquele, que seria um criado, mas o príncipe do reino de onde esse criado proviesse. Sim, porque, conforme a manhã ia avançando estes benditos seixos já estavam sendo procurados em outros reinos onde o rio Ishikon passava.
A princesa Hirakusora não fez cerimônia com sua imaginação. Idealizou um principe muito galante, inteligente, hábil, gentil, amigo, de fácil convívio, amoroso, fiel (fiel!), divertido e muito, muito rico. Também cheio de saúde como ela para que tivessem uma dúzia de filhos homens para reinar por todo o país. Enquanto chegavam seixos não tão perfeitos, alguns quase perfeitos, ela os recusava e ia delineando mais detalhes das vestimentas do príncipe que lhe seria apresentado ainda esta tarde: vestido de verde, com detalhes pretos para dar um ar de sobriedade e firmeza. E como era bonito e alto, este príncipe! Quase desmaiaria ao vê-lo. Tinha certeza de que, através destes seixos, ela encontraria a perfeição. A perfeição viria para ela na pessoa do príncipe, agora estava convencida. Ela, enfim, se sentiria realizada.
Ocorre que Ooita também tinha seus planos. Não era à toa que era conhecido como o velho sábio pescador.
Ele sabia onde encontrar quatro seixos perfeitos. Seu amigo Michido os tinha. Havia recolhido seixos perfeitos, uns vinte, ao longo de toda uma vida.
Enquanto Ooita pediu que os quarenta homens e todos os que quisessem levassem seixos para a princesa avaliar, foi calmamente até a choupana de Michido e lhe pediu quatro seixos perfeitos, o que recebeu com alegria porque a amizade que os unia dispensava qualquer explicação.
Às onze horas chegou, de volta, em frente à princesa que estava aguardando e lhe fez uma proposta: que daria os seixos para que ela os pintasse mas que em troca ele os queria pintados até ao meio-dia, sem falta. Isto lhe traria a resposta que tanto ansiava receber dos Céus.
Ela ficou surpresa porque não havia dito a ninguém que havia uma pergunta, uma revelação que buscava: a revelação do encontro da perfeição.
Pôs-se a trabalhar sem demora e com o maior capricho que lhe era possível e tão natural. Todos aguardavam sentados ao seu redor e calados.
Enfim, quando os seixos estavam lindamente pintados e que exclamações de admiração eram ouvidas de todos que se aproximavam dos seixos pintados ela se dirigiu ao lago, junto a Ooita e suas amas para lavar suas mãos e ouvir a resposta.
Ooita sentou-se debaixo de uma cerejeira e aguardou a princesa. Esta logo se aproximou e também se sentou.
Ele a olhou profundamente e lhe perguntou:
- O que procura?
- A perfeição.
- Em algum príncipe?
- Certamente.
- Os seixos eram perfeitos?
- Sim. Eram.
- Sua pintura ficou perfeita?
- Sim. Ficou.
- E se eu lhe disser que estes seixos eram de meu amigo Michido?
- Oh! Não! O velho pescador segundo sábio?
- Sim.
- Então... Então não existe perfeição.
- Hirakusora estava totalmente decepcionada. Então não havia príncipe perfeito, nem nada mais de tudo o que imaginara...
- Princesa, seu nome significa Luz do Céu. Será que não consegue sentir em seu coração a resposta para sua pergunta?
- Sentir?
- Sim. Feche os olhos e me responda novamente. Onde está a perfeição?
- Nos seixos.
- Não.
- Na minha pintura.
- Está se aproximando da resposta. Sinta a Luz do Céu e me responda, princesa. Onde está a perfeição.
- Em mim?
- Sim, princesa. Em você, quando você a busca. Você a buscou nos seixos e na maestria com que os pintou. Mas isso só foi possível porque a perfeição estava dentro de você. A perfeição é um aprendizado de uma vida inteira e que só depende de nós porque está dentro de nós. Aceita isso?
- Agora entendo, velho sábio pescador, que enquanto não encontrar o que quero dentro de mim nada que venha de fora me satisfará. Agora faço juz a meu nome, Luz do Céu. Que o céu o proteja pelo resto de sua existência.
A princesa se levantou e voltou ao palácio, com seu séquito de amas, disposta a ser feliz a cada momento de sua vida.

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quinta-feira, 4 de março de 2010

RECEITA PARA LIDAR COM A ALMA RASGADA

Você que teve a alma rasgada
Entre a adolescência e a juventude
Faça o seguinte:
Segure o tecido da alma
Na parte que se rasgou
E emende essa parte da adolescência
Com a parte da juventude,
Com fios de compaixão.
A outra parte,
A que fica no final da juventude, você costura,
Dalí em diante, ou seja, nesta ruptura,
Com fios de esperança.
Estenda depois o tecido da alma
E jogue água sanitária no período da juventude.
Assim, aquela fase em que você sofreu sem saber porquê,
Lutou sem saber porquê, riu sem saber porquê,
Você desbota. Faça com cuidado, afim de obter um borrão estético.
Da emenda com fios de esperança em diante, você estende,
Com carinho e passa à ferro, com cuidado.
Vá passando o tecido, nas flores alegres, nas flores miúdas e singelas,
E, sem ressentimento, nas flores negras das crises que vieram.
Sinta que o tecido passou de algodão à seda, com alguns espaços em flanelinha,
Para dar aconchego aos dias de frio, quando os filhos pedem para dormir
Na cama dos pais.
Vá até o final do tecido, ao seu momento presente.
Segure o tecido da alma, com carinho, e estenda este final numa janela
Pintada de verde “casa de campo”, com vista para o campo, o céu azul e um riacho.
Deixe este pedaço debruçado na janela para tomar sol e sentir ar puro.
Não se esqueça de recolher o tecido à noite, ou quando chover ou esfriar.
Neste caso coloque-o delicadamente num cesto de vime,
Olhando para as fotos da família. A foto dos filhos dará um imenso prazer à essa alma
Que continua a florir.
Às vezes, de anos em anos, volte a comtemplar o tecido do início: a sua infância bordada
Em ouro sobre azul, com um mar de rosas em baixo. Passe os olhos, com compreensão,
Pelo tecido da adolescência, depois do rasgão, sem se deter muito.
Continue, sem deter o olhar, no borrão da juventude, respingando bolas de tinta cor-de-rosa, para lembrar que você não fez por mal, estava apenas buscando.
Continue a contemplar o tecido e pode se alegrar cada vez que passar por uma parte boa,
Ou muito boa.
Não chore sobre as flores negras sobre seda branca- talvez fôsse necessário para o aprendizado da alma.
Continue, até o momento presente, até o final provisório do tecido, que é
Do que você deve cuidar. Não negligencie.
Segure-o com carinho, colocando-o para tomar sol,
recolhendo quando não estiver favorável.
Assim procedendo você terá sempre
Alma nova, serena e bem cuidada,
Para oferecer ao contato com os outros

UMA COISA MAIS MODERNA

Marina trabalha numa galeria de arte. Ela tem uma colega de trabalho que não sabe viver.
Entra o cliente, olha tudo, faz perguntas. A colega não sabe ser simpática, não é do temperamento dela. Marina não pode dizer nada. Não pode perder o emprego.
Marina mora com sua mãe. Sua mãe está velha e é um saco. Claro que pra ela todo o mundo acima de trinta é velha. Mas sua mãe realmente embarangou. É uma baranga de quarenta e oito anos. Fazer o quê...
O pior são os namorados dela. Cada coisa mais esquisita.
Marina estava no emprego. Entrou um cara na galeria. Era a vez dela atender.. Achou o cara um gato, meio quize anos mais velho do que ela mas, tudo bem, até aí dá pra encarar.
Marina era bem travada mas o cara tinha que ser atendido. Foi.
O cara olhou tudo, fez perguntas. Ela respondeu, tentou prender o cliente:
- Mas, o quê mais exatamente o senhor está procurando?
Ele olhou pra garota pela primeira vez porque achou engraçada a pergunta.
- Estou procurando uma coisa mais... moderna.
- Mais contemporânea, o senhor quer dizer?
Ele achou engraçado, de novo.
- Sim, mas não quero dizer necessàriamente arte abstrata, entende?
Até que o cliente estava sendo simpático. Ela entendeu. Foi até a parte de cima da galeria procurar algo adequado enquanto o cliente esperava lá embaixo.
Deu uma “sacada” no cara, da sacada. Continuou achando ele interessante mas quem era ela? Ele comprando arte e ela uma simples recepcionista com três meses de formação em arte. Só o básico. Só o que sabia era o que tinha na galeria e onde encontrar a tabela com as informações: na gaveta.
Achou um quadro descolado mas desceu pra fazer outra pergunta:
- O senhor tem preferência pelas dimensões?
- Ahnn? Não importa. Traz o que você achar interessante. Eu espero.
Ela subiu correndo e pediu ao rapaz da loja pra descer com o quadro. Era um pouco pesado pra ela. Desembrulhou em frente ao cliente, procurando deixar o quadro no ângulo certo da parede lisa, por trás. Precisava dessa comissão. Sua mãe precisava de remédios e de camisinhas. Se ela não cuidasse da mãe na saúde e nas imprudências, quem cuidaria?
Marina ficou de costas pra parede, segurando o quadro com as pernas. Não era a altura ideal mas o cliente também... O cliente olhava vidrado... Para ela e não para o quadro.
“Caramba, como vou sair dessa? Quanto tempo vai demorar pra ele tirar os olhos de mim e olhar pro quadro? Quanto tempo vai demorar pra eu arrumar um marido, casar e ter filhos ? Quanto tempo vai demorar pra eu me livrar da minha mãe? Quantos anos eu vou ter que estudar de noite pra arrumar um bom emprego? Quando é que esse cara vai parar de olhar pra mim e olhar o quadro?” Arriscou:
- Senhor? Gostou do quadro?
- Ahnn? Sim. Vou levar. Quer dizer, quanto é? Sim, vou levar.
- Ela tratou da venda e de embalar o quadro mas estava super nervosa porque o cara não tirava os olhos dela. “Caramba! Mundo cruel, modernidade de merda! Esse cara tá me deixando super nervosa. Os tipos acham que é só chegar e cantar que as menininhas pobres e carentes dão pra eles de primeira. Aposto que vai me convidar pra sair.
- Sem querer misturar as coisas, você aceita almoçar comigo?
“Não disse?”
- Misturar o quê com o quê?
- Você aceita almoçar comigo, Marina?
- Como o senhor sabe o meu nome?
- Perguntei pra sua colega enquanto você estava lá em cima. E não vou te dizer a frase batida “Senhor está no céu” porque sei que vocês têm ordem de tratar os clientes por “senhor”e “senhora”. Eu conheço o dono da galeria. Aceita?
-O senhor pode passar outro dia? Estou atrapalhada hoje, não consigo nem pensar direito.
- Claro que passo. Tchau, Marina?
Sorriu pra ele. Não quis pensar mais. São todos iguais. Só quer me levar pra cama. Depois casa com menina do “meio social” dele. Tá bom!
Chegou em casa, não viu a mãe. Mas estava bagunçado. Era até meio normal, só ela arrumava. Percorreu os cômodos e achou a mãe, deitada no chão, seminua. Tentou acordá-la. Devia ser mais um porre. Mas não. Ela estava morta.
Chamou a vizinha. Sentou-se. Deixou a apatia tomar conta. Deixou tudo por conta dos outros.
Foi levada para o velório. Não soube quem levou. Não soube quem vestiu a mãe, quem providenciou tudo, quem pagou. Estava “fora do ar”.
Foi levada para perto do caixão. Ainda não sabia do que a mãe tinha morrido. “Não deixou nem um bilhete, porra!...” Lembrou-se da brincadeira que tinha com a mãe. Lembrou-se que a mãe estava no chão de calçinha e soutien. Soutien.
Meteu a mão dentro do soutien da mãe. Peito esquerdo. Lado do coração. Encontrou um bilhete. Mal escrito, mas era pra ela. Ficou com medo de ler. Apertou o bilhete na mão. Olhou para o lado. Perguntou de que a mãe tinha morrido. Do coração? Mas como? De súbito? Nem sempre. A pessoa pode se sentir enjoada primeiro, pode levar um tempo. “Tempo pra achar um pedaço de papel e um lápis, no meio daquela bagunça...” Saiu dalí procurando um canto pra ficar só. Leu o bilhete. “Arrisque-se, Marina!” O ponto de exclamação era um fio cheio de curvas que acabava quase no final do papel mas tinha um ponto no final, pra mostrar bem que era um ponto de exclamação.
Conseguiu chorar.
Um mês se passou. Estava no trabalho. Trabalho distrai a cabeça. Tinha voltado no dia seguinte à morte da mãe. Tirou o bilhete do lado esquerdo do soutien, discretamente, no meio da loja. Não tinha ninguém.
A porta da galeria se abriu. O sininho tocou. Era ele. O Marcos. Já sabia o nome do cara.
Ele disse “meus pêsames”. Depois sorriu.
- Vamos almoçar?
Ela topou.

UNHA ENCRAVADA

Queria sorrir mas não podia.

Tamanho era seu desconforto que precisou cruzar as pernas e esboçar um sorriso amarelo para que os presentes não percebecem o que lhe ia na alma.

Presentes na sala os oito integrantes da família, confraternizavam e discutiam a novidade.

Marilia estava grávida. Após cinco anos de tentativas sua mulher, enfim, engravidara deixando para trás os termometros, as tabelinhas, os cálculos, as idas ao médico, exames sem fim, tentativas de inseminação artificial, o diabo a que tivera que se submeter durante todos esses anos em que fora obrigado a copular na hora certa, nem antes, nem depois.

Diversas vezes pensou em abandonar Marilia mas o pavor que tinha do sogro, sujeito violento, militar empedernido e os arrepios que lhe causavam as intrigas da sogra, faziam-no desistir.

Acordar suando no meio da noite era corriqueiro para ele. Marilia nem percebia.

Ia até a cozinha, bebia água, e se recordava das machadadas que recebia do sogro ou das facadas da sogra, já que estes sonhos se revesavam e se repetiam reiteradamente.

Sonhos interrompidos pelo susto de acordar todo suado e ir até a cosinha para beber água e se recordar.

Tudo se repetia e se repetia. Os apelos de Marilia para a cópula obrigatória, os sonhos com os sogros. Cinco anos que pareciam não ter fim.

Só uma coisa se repetia e lhe dava prazer: O futebol aos domingos com os amigos. Isso era sagrado.

Um dia, sentado no banco dos reservas, tirou a meia e ficou observando uma unha encravada. Um par de cochas grossas ocuparam, em camara lenta, o seu campo visual. Foi, então, que teve a idéia. Aquelas cochas pertenciam ao Thiago, sujeito boa pinta, galinha até debaixo d’água, parecido com ele, até. Não no comportamento mas no fato de ser boa pinta, alto, cabelos castanhos e um bom sujeito, afinal.

Fez a proposta indecente. Thiago custou a acreditar e mais ainda em aceitar. Mas ao final se rendeu já que Marilia era gostosa, seu amigo estava cansado de transar com hora marcada e...um filho para o casal seria uma boa ação.

O duro é que Marilia teria que ser cantada, seduzida. Ela jamais aceitaria uma proposta fria de seu próprio marido de ter um filho com ele para que resolvessem logo o problema.

E a coisa aconteceu. Para seu desgosto Thiago não tivera muita dificuldade para levar sua mulher para a cama.

No inicio lhe pareceu chocante mas, afinal, tinha sido sua a idéia e agora, com a família ali reunida só lhe restava comemorar.

Os sonhos tinham se alterado. Ultimamente acordava suado e assustado e ia para a cozinha beber água e se recordar da visão de Marilia, sorrindo e lhe dando machadadas ou então era Thiago que lhe sorria e esfaqueava, sonhos revesados e reiterados. Suportaria. O que fazer?

Ao ser confirmada a gravidez de Marilia diante dos familiares sorridentes, com copos estendidos na mão, sugerindo nomes, perguntando por Thiago, o futuro padrinho ausente, ele teve vontade de tirar a meia do pé e observar sua unha, quando o sogro lhe dirigiu a pergunta:

-Que nome vai ter o menino, afinal? Responda!

-UNHA ENCRAVADA, gritou, para espanto de todos.

-UNHA ENCRAVADA DE MELLO E DANTAS, repetiu, completando com o sobrenome enquanto se levantava, dirigindo-se para a porta e para seu carro, que o levaria diretamente a um cabaret com muitas bebidas e mulheres fáceis e uma noitada de transas sem hora pra começar nem pra terminar.