sexta-feira, 8 de julho de 2011

PASSAPORTE VENCIDO
27 de junho, 2011

Georg era o nome de meu pai. Ele me nomeou Jacques, o que veio a salvar minha vida quando fugimos da Alemanha, em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 a 1945. As mulheres da família tinham os nomes típicos judeus, sendo Sara, minha mãe, Deborah, minha esposa e assim por diante.
Eu já estava estabalecido como moldureiro em minha cidade, Baden Baden quando começamos a sentir o cheiro de perigo no ar.
Diz a história que o Tratado de Versalhes foi a causa mais importante, indireta, para o início da guerra porque sujeitou o povo alemão a grande humilhação, culpando a Alemanha e seus aliados pela primeira guerra mundial e impondo aos alemães pagamentos de somas vultuosas aos Aliados, com graves consequências na economia do país, provocando alta inflação. Isto gerou o forte sentimento nacionalista que veio a ser usado por Adolf Hitler e o Partido Nazista, com sua ideologia racista que apregoava a superioridade da raça ariana identificando-a com o povo alemão. Esta teoria foi trazida por uma obra de 1899 do inglês Chamberlain, que foi chamado de O antropólogo do Kaiser. O preconceito e hostilidade contra os judeus gerou a perseguição da qual alguns de nós conseguimos escapar.
Quando atiraram a primeira pedra em nossa loja resolvi vendê-la, sem pestanejar, e partir para Lisboa onde calculei que a guerra não chegaria.
Após vender a loja, a casa, móveis e algumas jóias escapamos de Baden Baden, de carro, à noite, com poucas malas. Eu e minha mulher, Deborah estávamos com 30 anos, nossa filha Anna com 3 anos e meu pai Georg com 70 anos. Minha mãe Sara havia falecido.
Deixamos nossa terra para trás e enquanto eu dirigia pensei em quantos grandes homens a Alemanha havia produzido. Filósofos como Kant, Hegel, Schelling, Schopenhauer, Nietzche. Escritores como Goethe e Schiller, os Irmãos Grimm, Thomas Mann, Herman Hesse. Compositores como Handel, Bach, Beethoven, Schumann, Mendelssohn(Também judeu), Brahms. Eu havia passado toda a minha infância, adolescência e juventude em Baden Baden, no vale do rio Oos, chegando à planície do Reno. Não esqueceria o ar das montanhas da Floresta Negra e das fontes termais. Não esqueceria o gosto da salsicha, da cerveja e do bolo Floresta Negra que veio a ser divulgado no mundo inteiro.
Teríamos que passar pela França, que foi ocupada em 14 de julho de 1940 e precisamos da ajuda da resistência francesa na figura da corajosa Margot. Ela nos ajudou na travessia desde a cidade de Strasbourg, passando por Lyon e Toulouse até Andorra. Após atravessarmos os Pirineus pudemos seguir, por conta própria até Madrid e por fim, até Lisboa. Porém tivemos que deixar para trás um passageiro: meu pai Georg.
Em uma das barragens fomos parados pelos nazistas que nos mandaram descer do carro naquela noite gelada e nos pediram os documentos. Meu pai estava com o passaporte vencido. Ele não me deixou providenciar sua documentação, disse que ele mesmo o faria. Penso hoje que, aos 70 anos, meu pai não queria deixar para trás sua terra, sua esposa Sara, sua história de vida. Ele se considerava alemão mesmo que os alemães lhe dissessem agora o contrário. Não estava preocupado com as consequências.
Vi seus olhos fixados em mim, apesar da pouca claridade das lanternas e seus olhos diziam para que eu seguisse em frente. Foi levado por dois homens que o puseram num caminhão e nos deixaram partir.
Seguimos, tensos, a dura travessia comendo cascas de batatas e pão duro, evitando qualquer sentimento que nos fizesse fraquejar na luta pela nossa sobrevivência. Nossa meta era Lisboa e era tudo o que importava.
Depois de estabelecidos em Lisboa, com a ajuda de diversas pessoas tanto da comunidade judaica como outras contrárias à guerra, consegui me reestabelecer no comércio como moldureiro, abri uma loja e continuei a vida com a ajuda de minha mulher Deborah e Anna, nossa filha. Em 1943 nasceu nosso filho Luis.
Ao registrá-lo aproveitei para pedir às autoridades portuguesas a mudança de meu nome Jacques para Jaime. Aqueles alemães que nos pararam na barreira em que levaram meu pai só me permitiram continuar devido à minha origem francesa por parte de meu avô, pai de minha mãe, judia, filha de mãe judia.O nome Jacques, é de origem francesa. O oficial simpatizou com este detalhe naquele momento decisivo e eu nunca soube porquê. Em Lisboa passei a me chamar Jaime, que vem do hebraico Jacó e significa “o que vence, o vencedor”.
Lembro-me de Luis, ainda criança, se queixar da sopa de legumes que Deborah havia feito para nosso jantar. Disse que na casa dele haveria fartura. Nem eu nem Deborah tivemos ânimo para repreendê-lo ou vontade de nos lembrarmos das cascas de batatas e pão duro que comemos para chegar até a presente sopa de legumes tão saborosa no agradável inverno de Lisboa.
Contrariando a média das famílias nas quais as mulheres ficam viúvas e os homens se vão cedo, eu também perdi minha Deborah assim como meu pai Georg tinha perdido sua Sara. Luis, já rapaz, que havia se casado com Maria João insistiu para que eu fôsse morar com eles. Como o apartamento da Avenida de Roma era espaçoso e vinha a caminho um neto, aceitei, vendi a loja e mudei meu estilo de vida. Nasceu Antonio, em 1966 e eu, portanto me tornei avô aos 55 anos. Pretendia dar atenção ao neto já que ao filho nunca fora possível devido à dedicação ao trabalho, o que me parece bastante comum para todas as gerações.
Agora a família era católica pois Antonio era filho de portuguesa. Para os judeus o que vale é a progenitora. Luis, meu filho,embora nascido em Lisboa era judeu por ser filho de mãe judia, minha saudosa Deborah.
Minha filha Anna casou-se com um francês e foi morar em Paris.
Em 1977, quando eu estava com 66 anos fui a Baden Baden rever minha cidade natal. Como era natural tudo estava muito mudado. Consegui localizar fragmentos da minha infância, fragmentos do dia da partida e alguma saudade, termo português por excelência. A vida me fez estrangeiro em meu país e natural do país dos outros. Não podia me queixar, sobrevivi. Meu filho Luis e meu neto Antonio jamais compartilhariam este sentimento tão peculiar que só algumas pessoas conhecem.
Em 1983 Antonio estava com 17 anos e eu com 72. Durante a refeição ele se queixou do frango com arroz servido por sua mãe após um consomé de legumes delicioso sendo que a refeição ainda contava com os deliciosos doces portugueses. Havia pastéis de Santa Clara e os mundialmente famosos pastéis de natas feitos por Maria João para a sobremesa.
- Venha comigo, avô, para a terra da fartura, ó pá.
Antonio estava decidido a emigrar para o Brasil onde, dizia, poderia comer bifes de filé mignon com batatas fritas o quanto quisesse.
Olhei para Luis que não se animou a repreender o filho. Lembrei-me de meu pai que certamente morrera de fome em algum campo de concentração. Desejei a Antonio que o futuro lhe trouxesse um filho que se queixaria da comida de sua casa. Seu filho seria seu mestre.
Levantei-me, por curiosidade e fui até a gaveta onde guardava meu passaporte e observei, mais uma vez, que estava vencido. Nunca tive intensão de renová-lo. Meu pai perdera a vida por causa desta singela caderneta de papel e seus carimbos. Eu não desejava outra vida em outro lugar. Meu passaporte, numa espécie de solidariedade a meu pai, continuaria vencido.

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