terça-feira, 14 de junho de 2011

A CULPA


Sentiu-se culpado ao ver o filho chorando na sua frente, frustrado porque a roda do carrinho quebrara e ele não tinha como consertar àquela hora da noite.
Tentou mas não conseguiu e a criança continuava chorando. Ele culpado.
Culpado foi para a mesa de jantar porque a comida já estava fria pois sua mulher chamara-o para jantar a cerca de meia hora enquanto ele lutava para consertar o carrinho do filho.
Durante o jantar ela lembrou que a conta do açougue vencia no dia seguinte e mais uma vez sentiu-se culpado porque ele não poderia pagar a conta, seu salário ainda não estava disponível, só no dia seguinte. Falaria com o açougueiro pela manhã, antes de ir para o trabalho.
Olhou aquele casal de pinguins em cima da geladeira e sentiu-se culpado porque não achava brega pinguim de geladeira sendo que todo o mundo achava. Não entendia porquê. Geladeira lembra frio, pinguim vive no frio, pinguim combina com geladeira. Que haveria de errado nisso? Mas as pessoas achavam brega, então ele estava errado e deveria se sentir culpado.
De manhã, ao tomar seu café respingou um pouco de café na camisa e sua esposa, com cara irritada, levou a camisa para tirar a mancha. Sentiu-se culpado. Não sabia se deveria esperar que sua esposa retornasse com a camisa em ordem ou se deveria pegar outra, mas aí sujaria mais de uma camisa por dia, o que faria com que se sentisse culpado.
Aguardou uns quinze minutos até que sua esposa retornou, com cara de zangada, sem a camisa e nada disse, o que poderia significar que ele deveria ir buscar outra camisa e sair logo, antes que fizesse algo mais de errado
No ponto de ônibus só conseguiu pegar o terceiro que passou, já que as pessoas se acotovelavam para pegar os ônibus a fim de não chegarem atrasadas no trabalho. Ele se sentiria culpado se acotovelasse uma senhora que poderia ser sua mãe portanto ele chegou atrasado no trabalho, o que o deixou culpado mesmo antes de levar uma bronca do chefe. Não tinha argumentos. Ele que saisse mais cedo de casa. Culpado.
Isso depois de ter passado pelo desconforto de estender sua última nota de cinquenta reais para o trocador que o olhou com maus bofes mas teve que aceitar porque ele não tinha o dinheiro trocado para pagar a passagem. Culpado.
Passou o dia tentanto não ofender ninguém o que é quase impossível para quem que, como ele, trabalhava atendendo ao público justamente no setor de Reclamações. Sim, a culpa deveria ser sua e não da empresa. Pelo o menos as pessoas acalmavam quando viam que ele não procurava justificar os erros mas sim, corrigi-los. Mesmo assim a sensação de culpa só o deixava quando encerrava o expediente. Até que outra coisa acontecesse.
À noite, após passar na padaria e sentir-se culpado porque não lembrara de comprar um sonho para sua patroa, viu de longe, quando chegava perto de casa, sua mulher, a patroa, beijando na boca um homem que se afastava. Congelou. Ficou atrás da árvore para ter certeza que era mesmo sua patroa. Ela entrou em casa. Era. Pensou que a árvore ia cair e a culpa seria sua mas, não, era tontura mesmo e ele é que estava tonto, não a árvore, lógico.
Dirigiu-se cambaleante para casa e entrou. Olhou sua mulher que o recebeu com toda a naturalidade, como se nada estivesse acontecendo.
Foi até a cozinha colocar os pães na mesa e reparou nos pinguins que pareciam sorrir.
- “Ah, éee?!”, falou em bom tom. Sua mulher até estranhou.
Foi até o banheiro e pegou esparadrapo. Achou a tesoura e pegou a caneta da filha, na mochila, sem pedir licença à menina, o que a fez estranhar.
Sentou-se e escreveu em dois pedaços de esparadrapo: a culpa é sua.
Na cozinha colou os esparadrapos nos pinguins, um em cada um, deixando-os bem visíveis..
Sentou-se , fez seu lanche sem dar maiores explicações e foi até a sala. Sua mulher assistia TV, como sempre , só que era quarta-feira, dia de futebol. Pegou o controle, trocou o canal para o futebol e ela que se atrevesse a reclamar.
Ela foi até a cozinha, nada disse, e para o quarto se dirigiu.
Ele olhou para trás e viu que os pinguins não sorriam mais.Estavam ligeiramente voltados um para o outro com os dizeres dos esparadrapos acusando-os, reciprocamente: a culpa é sua.
Enfim agora ele entendia que a culpa nunca mais voltaria para ele porque estava sendo discutida eternamente pelos pinguins e enquanto isso, que cada um carregasse suas culpas, ele não carregaria mais o mundo nas costas.
Virou-se para ver um gol contra o Flamengo mas não esquentou a cabeça. A culpa, com certeza não era dele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário