quinta-feira, 22 de julho de 2010

Seixos

Na cidade de Yugan (rocha quente), no reino de Kawakai (rio agradável), vivia uma princesa chamda Hirakusora (Luz do Céu).
Ela era filha única dos reis do lugar e por isso tinha um pequeno defeito: era muito exigente. Mimada seria a palavra mais correta.
Numa manhã Hirakusora acordou e foi sentar-se nas escadarias do palácio, em frente ao lago.
Enquanto suas amas preparavam suas vestimentas apropriadas para a parte da manhã e seu mingau, ela escapou para as escadas para pensar o que faria naquele dia.
Bem sabia Hirakusora que teria coisas das quais não poderia escapar: trocar de roupa três vezes ao dia – uma para a parte da manhã, outra para de tarde e outra para de noite, fora a roupa própria para dormir. As cores da manhã eram vibrantes, com tons de amarelo e vermelho, também rosa forte de flores miúdas, para animá-la e fazê-la ficar disposta para passar a manhã. As vestes da tarde tinham tons de azul, verde e roxo, com detalhes em lilás, para fazer com que se concentrasse naquilo que deveria aprender. As vestes da noite eram brandas, em tons de cinza claro ou beges para que fosse se acalmando para a refeição noturna e para o sono da noite, a não ser que fosse dia de festa, quando era permitido muitos vermelhos , dourados e fios brilhantes.
Durante a manhã poderia passear pelos jardins e fazer o que quisesse, o que era mais ou menos quase nada, segundo sua opinião, ou seja, passear pelos jardins e praticar artesanato livre. À tarde estava sujeita a uma disciplina rígida que compreendia aulas de etiquetas, cerimônia do chá, ikebana, caligrafia e palestras sobre diversos assuntos a respeito do Reino, desde religião até política e diplomacia. Ela não precisava aprender a limpar um palácio, cozinhar ou cuidar das vestimentas mas precisava aprender o bastante para saber mandar. “Quem não sabe fazer, não sabe mandar”, ensinaram-lhe seus mestres.
Sua mãe era um pouco distante porque além de ter que cuidar de si mesma para estar sempre muito bem apresentada junto ao rei, seu marido, ela tinha que literalmente viver para agradar ao marido. Deveria viver em função do marido e jamais em função dos filhos, mesmo que tivesse muitos filhos, o que não era o caso.
Seu pai era mais distante ainda, embora lhe chamasse sempre de querida princesinha e a pusesse no colo sempre que possível, mesmo já sendo uma moça quase em idade de casar. Agora que completara quinze anos teria que casar. Já estavam providenciando um marido para ela em outros reinos. Pedia aos céus que não fôsse um reino muito afastado porque gostava de Kawakai e principalmente de sua cidade, Yugan, onde havia um lindo rio com muitos seixos.
Tomou seu mingau ali mesmo, olhando para o rio enquanto pensava no que fazer durante aquela linda manhã. Estava, porém, preocupada e assustada com o casamento que se aproximava.
Como era uma moça exigente, resolver impôr aos pais uma condição ao noivo, para que ele fosse o escolhido. Logo caiu em si e se lembrou que ela é que teria que ser escolhida e que desse graças aos Céus se conseguisse um marido naqueles tempos de tantas guerras e tão poucos principes que sobravam para casar com as princesas que ficavam protegidas em seus castelos, como ela.
Mas ela queria fazer uma exigência. Sismou que faria alguma exigência naquela manhã e portanto tratou de inventar enquanto tomava seu mingau.
De repente algo lhe ocorreu. Exigiria, naquela manhã, seixos muito redondos par a pintá-los como peso para papéis. Sim. Não podiam deixar de atender à sua exigência porque, afinal, era-lhe permitido fazer arte livre pela manhã e o dia da troca de presentes estava se aproximando. Era um dia como o Natal dos cristãos do qual ela já ouvira falar.
Comunicou seu desejo às amas, que ficaram intrigadas com tudo, inclusive com o fato de que ela queria seixos muito redondos. Umas das amas, a mais velha, ainda se atreveu a perguntar se os seixos não poderiam ter formatos variados, já que eles são assim por natureza e seria muito difícil achar seixos bem redondinhos. Mas a princesa a olhou com desprezo e insistiu. Bem redondinhos. Perfeitos. Ela era exigente e pronto. Não era isso que ouvia todos dizerem a seu respeito deste que nascera? Então, ela era assim como a definiam: perfeccionista e queria seixos perfeitos.
Sem perda de tempo as criadas chamaram o velho sábio pescador para ajudá-las a resolver a questão porque o sol já ia alto.
Ooita recrutou quarenta homens e mulheres que se dirigiram sem demora para a beira do rio à procura de seixos perfeitos. Hirakusora declarou que só pintaria quatro naquela manhã mas que precisava escolher os mais perfeitos, aliás os absolutamente perfeitos e que portanto eles que não demorassem a trazê-los ou teriam que prestar contas a seu pai, o que poderia significar a pena de morte.
Matava-se por tudo naqueles tempos. Isto estava, inclusive causando um problema social porque os homens morriam nas guerras para defender o reino ou por acusações singelas como esta de não cumprir corretamente a ordem da princesa. Assim as mulheres ficavam sem maridos e o reino em defesa. Seu pai não iria gostar nada desta estória mas ela bateria o pé até conseguir o que queria, como sempre. Afinal, era o único meio de divertir sua alma ao longo de todos estes anos em que tudo era previsível: sua infância, juventude, casamento e velhice. Até morrer. O que haveria de surpreendente, de aventura em sua vida? Quase nada. Porisso era preciso criar. Será que conseguiriam míseros quatro seixos perfeitos para que ela pintasse agora pela manhã? Que divertido! Enquanto isso prepararia a mesa, as tintas e os pincéis.
Quase uma hora se passou enquanto quase todo o reino enlouquecia tentando cumprir o capricho da princesa. Quem não procurava seixos perfeitos, comentava sobre isso. Até com os viajantes.
Seu pai chegou a achar divertido tudo isto porque não via um alvoroço daqueles na cidade há muito tempo. A monotonia de suas vidas só era cortada com notícias das guerras, de sangue e de morte. E afinal de contas ele não iria condenar ninguém à morte por causa de mais um capricho da princesa, ora essa!
Por sua vez a princesa, enquanto arrumava o material para pintar os seixos que sabia que chegariam dava asas à sua imaginação. Começou a acreditar que aquele que encontrasse os seixos seria o dono do seu coração. Bem, não exatamente aquele, que seria um criado, mas o príncipe do reino de onde esse criado proviesse. Sim, porque, conforme a manhã ia avançando estes benditos seixos já estavam sendo procurados em outros reinos onde o rio Ishikon passava.
A princesa Hirakusora não fez cerimônia com sua imaginação. Idealizou um principe muito galante, inteligente, hábil, gentil, amigo, de fácil convívio, amoroso, fiel (fiel!), divertido e muito, muito rico. Também cheio de saúde como ela para que tivessem uma dúzia de filhos homens para reinar por todo o país. Enquanto chegavam seixos não tão perfeitos, alguns quase perfeitos, ela os recusava e ia delineando mais detalhes das vestimentas do príncipe que lhe seria apresentado ainda esta tarde: vestido de verde, com detalhes pretos para dar um ar de sobriedade e firmeza. E como era bonito e alto, este príncipe! Quase desmaiaria ao vê-lo. Tinha certeza de que, através destes seixos, ela encontraria a perfeição. A perfeição viria para ela na pessoa do príncipe, agora estava convencida. Ela, enfim, se sentiria realizada.
Ocorre que Ooita também tinha seus planos. Não era à toa que era conhecido como o velho sábio pescador.
Ele sabia onde encontrar quatro seixos perfeitos. Seu amigo Michido os tinha. Havia recolhido seixos perfeitos, uns vinte, ao longo de toda uma vida.
Enquanto Ooita pediu que os quarenta homens e todos os que quisessem levassem seixos para a princesa avaliar, foi calmamente até a choupana de Michido e lhe pediu quatro seixos perfeitos, o que recebeu com alegria porque a amizade que os unia dispensava qualquer explicação.
Às onze horas chegou, de volta, em frente à princesa que estava aguardando e lhe fez uma proposta: que daria os seixos para que ela os pintasse mas que em troca ele os queria pintados até ao meio-dia, sem falta. Isto lhe traria a resposta que tanto ansiava receber dos Céus.
Ela ficou surpresa porque não havia dito a ninguém que havia uma pergunta, uma revelação que buscava: a revelação do encontro da perfeição.
Pôs-se a trabalhar sem demora e com o maior capricho que lhe era possível e tão natural. Todos aguardavam sentados ao seu redor e calados.
Enfim, quando os seixos estavam lindamente pintados e que exclamações de admiração eram ouvidas de todos que se aproximavam dos seixos pintados ela se dirigiu ao lago, junto a Ooita e suas amas para lavar suas mãos e ouvir a resposta.
Ooita sentou-se debaixo de uma cerejeira e aguardou a princesa. Esta logo se aproximou e também se sentou.
Ele a olhou profundamente e lhe perguntou:
- O que procura?
- A perfeição.
- Em algum príncipe?
- Certamente.
- Os seixos eram perfeitos?
- Sim. Eram.
- Sua pintura ficou perfeita?
- Sim. Ficou.
- E se eu lhe disser que estes seixos eram de meu amigo Michido?
- Oh! Não! O velho pescador segundo sábio?
- Sim.
- Então... Então não existe perfeição.
- Hirakusora estava totalmente decepcionada. Então não havia príncipe perfeito, nem nada mais de tudo o que imaginara...
- Princesa, seu nome significa Luz do Céu. Será que não consegue sentir em seu coração a resposta para sua pergunta?
- Sentir?
- Sim. Feche os olhos e me responda novamente. Onde está a perfeição?
- Nos seixos.
- Não.
- Na minha pintura.
- Está se aproximando da resposta. Sinta a Luz do Céu e me responda, princesa. Onde está a perfeição.
- Em mim?
- Sim, princesa. Em você, quando você a busca. Você a buscou nos seixos e na maestria com que os pintou. Mas isso só foi possível porque a perfeição estava dentro de você. A perfeição é um aprendizado de uma vida inteira e que só depende de nós porque está dentro de nós. Aceita isso?
- Agora entendo, velho sábio pescador, que enquanto não encontrar o que quero dentro de mim nada que venha de fora me satisfará. Agora faço juz a meu nome, Luz do Céu. Que o céu o proteja pelo resto de sua existência.
A princesa se levantou e voltou ao palácio, com seu séquito de amas, disposta a ser feliz a cada momento de sua vida.

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