quinta-feira, 22 de julho de 2010

A MAÇANETA

Lembro que virei a maçaneta dourada e redonda com meu paninho e com muito esforço. Eu tinha cinco anos. Consegui. Chamei minha mãe. “Mãe, estou com medo”. Ela veio me atender. Me levou pra cama dela, tonta de sono.
O apartamento em Copacabana continuou sendo minha casa de infância e adolescência. Aquela maçaneta do quarto dos meus pais foi girada diversas vezes por mim, cada vez com menor dificuldade.
Eu tinha mais tempo para girá-la à noite.
Uma vez girei a maçaneta e vi minha mãe deitada de lado, chorando muito, com a luz do abajur iluminando o seu rosto. Entrei e perguntei o que houve. Eu devia ter uns doze anos, nessa época.. Minha mãe se recusou a me dizer. Continuou chorando, sem grandes soluços mas com um choro constante e forte de quem sofre com ritmo, sem gritos e descontroles mas também sem esconder o que sente. Me pediu pra sair, eu o fiz.
Rodei a maçaneta dourada do quarto de meus pais , uma vez, com toda a facilidade – eu devia ter uns dezeseis anos – e vi meu pai largado na cama, totalmente alcoolizado, tentando se levantar sem conseguir. Fechei a porta mais por respeito; porque sabia que se eu entrasse e tentasse ajudá-lo ele jamais me perdoaria por tê-lo visto naquele momento de fraqueza.
Aos vinte e dois anos, meus pais tinham viajado no final de semana. Rodei a maçaneta e entrei com uma linda garota que conheci na praia, no posto cinco. Fizemos sexo a tarde inteira. Aquela garota era tão vulcânica que só uma cama de casal pra fornecer o espaço necessário às nossas peripécias.
Com trinta e dois anos decidi passar um ano viajando pela Europa. Parei tudo: emprego, namoro firme, cursos, e lá fui eu com minhas economias, mochila nas costas e barba por fazer. Valeu. Mas o melhor dia de toda a viagem foi quando girei aquela maçaneta, daquele quarto, daquele apartamento de Copacabana, que fazia parte da minha história de vida. Quando a girei e vi minha mãe recostada na cama, lendo Drummond à luz do abajur, a maçaneta caiu no chão e eu não sabia se prestava atenção a essa peça da casa que sempre me abrigou ou a minha envelhecida mãe a quem já olhava com outros olhos.
Casei-me aos quarenta anos. Minha mulher, já com trinta e cinco anos quis ter um filho logo, devido à idade que já entrava em gravidez de risco se esperássemos mais. Ela, minha mulher, veio morar comigo e minha mãe. Trocamos de quarto e mantivemos o escritório como estava, até a chegada do bebê.
Meu pai já não morava mais conosco e veio a falecer quando João Pedro, nosso filho, estava com três anos de idade.
Quantas vezes girei a maçaneta daquele quarto de casal em Copacabana, porque eu sempre chegava tarde da Redação ou dos bares com os amigos e minha mulher já estava deitada!...
João Pedro cresceu, minha mãe faleceu. Minha mulher e eu nos separamos.
Fiquei com o apartamento.
Até os dezoito anos João morou com a mãe mas depois disso quis morar comigo e não houve nada que ela pudesse fazer.
Ele ocupou o quarto que tinha sido meu, e depois da minha mãe. Agora do meu filho.
Percebi que agora girava duas maçanetas com a mesma insistência: a do meu quarto por ser natural, já que era onde eu dormia quase todas as noites e a do quarto do meu filho, para ver se ele já tinha chegado, fôsse às dez da noite, às três ou seis da manhã ou só no dia seguinte. A vida era dele, que fazer!
Um dia fiquei só.
João Pedro resolveu morar em Madrid com a jovem esposa. Ela tinha parentes lá e queria fazer um curso; ele tinha emprego assegurado, ganhando bem, junto a parentes dela. Foram.
Às vezes eu chegava em casa e, por força do hábito, girava a maçaneta do quarto de João e fechava a porta. Depois fazia o mesmo com o escritório. Só para descobrir que estava só. Aos sessenta e cinco anos estava só.
Girava a maçaneta do meu quarto de casal e nessa hora me perguntava: onde estão todos?
Resolvi me aposentar. Amigos disseram que o apartamento era grande demais para mim e que estava cheio de lembranças. Que talvez eu devesse mudar, sair dali, mudar de ares, olhar para o futuro.
Futuro? Meu futuro jamais seria tão longo e preenchido como havia sido o meu passado. Tudo estava registrado naquelas paredes que eu, inclusive, me recusava a mandar pintar. Não havia tragédias entre aquelas paredes. Só momentos bons e ruins, alegres e tristes, longos e breves – como em toda a família.
Não havia marcas de sangue na maçaneta do meu quarto. Só nos livros que escrevia. A minha maçaneta registrava apenas sentimentos necessários: expectativa, surpresa, alegria de voltar, cansaço ao chegar. Não havia razão para mudar de maçaneta, ou de quarto ou de apartamento. Ou de bairro. Copacabana do começo ao fim.
Meu médico me recomendou que usasse uma bengala para facilitar meus movimentos. Não que seja fundamental mas que já seria o caso.
Comprei uma bengala. Entrei em casa e não sabia o que fazer com ela, onde pendurá-la. Fui até a porta do meu quarto e pendurei a bengala na maçaneta. Me afastei para ter uma visão mais fotográfica. Foi quando me lembrei do paninho que sempre carregava nas mãos até os cinco anos de idade, de quando este paninho ficou preso na porta e eu me virei, deste mesmo lugar onde estava e tive esta visão fotográfica do paninho pendurado na maçaneta. Agora era a bengala. Era a mesma porta, a mesma maçaneta, o mesmo chão, a mesma perspectiva... E o mesmo menino. Com camadas e camadas de outras idades separando aquele paninho daquela bengala.
Não saio daqui. Aqui estou bem. Continuarei a girar esta mesma maçaneta até quando...

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