quinta-feira, 4 de março de 2010

UMA COISA MAIS MODERNA

Marina trabalha numa galeria de arte. Ela tem uma colega de trabalho que não sabe viver.
Entra o cliente, olha tudo, faz perguntas. A colega não sabe ser simpática, não é do temperamento dela. Marina não pode dizer nada. Não pode perder o emprego.
Marina mora com sua mãe. Sua mãe está velha e é um saco. Claro que pra ela todo o mundo acima de trinta é velha. Mas sua mãe realmente embarangou. É uma baranga de quarenta e oito anos. Fazer o quê...
O pior são os namorados dela. Cada coisa mais esquisita.
Marina estava no emprego. Entrou um cara na galeria. Era a vez dela atender.. Achou o cara um gato, meio quize anos mais velho do que ela mas, tudo bem, até aí dá pra encarar.
Marina era bem travada mas o cara tinha que ser atendido. Foi.
O cara olhou tudo, fez perguntas. Ela respondeu, tentou prender o cliente:
- Mas, o quê mais exatamente o senhor está procurando?
Ele olhou pra garota pela primeira vez porque achou engraçada a pergunta.
- Estou procurando uma coisa mais... moderna.
- Mais contemporânea, o senhor quer dizer?
Ele achou engraçado, de novo.
- Sim, mas não quero dizer necessàriamente arte abstrata, entende?
Até que o cliente estava sendo simpático. Ela entendeu. Foi até a parte de cima da galeria procurar algo adequado enquanto o cliente esperava lá embaixo.
Deu uma “sacada” no cara, da sacada. Continuou achando ele interessante mas quem era ela? Ele comprando arte e ela uma simples recepcionista com três meses de formação em arte. Só o básico. Só o que sabia era o que tinha na galeria e onde encontrar a tabela com as informações: na gaveta.
Achou um quadro descolado mas desceu pra fazer outra pergunta:
- O senhor tem preferência pelas dimensões?
- Ahnn? Não importa. Traz o que você achar interessante. Eu espero.
Ela subiu correndo e pediu ao rapaz da loja pra descer com o quadro. Era um pouco pesado pra ela. Desembrulhou em frente ao cliente, procurando deixar o quadro no ângulo certo da parede lisa, por trás. Precisava dessa comissão. Sua mãe precisava de remédios e de camisinhas. Se ela não cuidasse da mãe na saúde e nas imprudências, quem cuidaria?
Marina ficou de costas pra parede, segurando o quadro com as pernas. Não era a altura ideal mas o cliente também... O cliente olhava vidrado... Para ela e não para o quadro.
“Caramba, como vou sair dessa? Quanto tempo vai demorar pra ele tirar os olhos de mim e olhar pro quadro? Quanto tempo vai demorar pra eu arrumar um marido, casar e ter filhos ? Quanto tempo vai demorar pra eu me livrar da minha mãe? Quantos anos eu vou ter que estudar de noite pra arrumar um bom emprego? Quando é que esse cara vai parar de olhar pra mim e olhar o quadro?” Arriscou:
- Senhor? Gostou do quadro?
- Ahnn? Sim. Vou levar. Quer dizer, quanto é? Sim, vou levar.
- Ela tratou da venda e de embalar o quadro mas estava super nervosa porque o cara não tirava os olhos dela. “Caramba! Mundo cruel, modernidade de merda! Esse cara tá me deixando super nervosa. Os tipos acham que é só chegar e cantar que as menininhas pobres e carentes dão pra eles de primeira. Aposto que vai me convidar pra sair.
- Sem querer misturar as coisas, você aceita almoçar comigo?
“Não disse?”
- Misturar o quê com o quê?
- Você aceita almoçar comigo, Marina?
- Como o senhor sabe o meu nome?
- Perguntei pra sua colega enquanto você estava lá em cima. E não vou te dizer a frase batida “Senhor está no céu” porque sei que vocês têm ordem de tratar os clientes por “senhor”e “senhora”. Eu conheço o dono da galeria. Aceita?
-O senhor pode passar outro dia? Estou atrapalhada hoje, não consigo nem pensar direito.
- Claro que passo. Tchau, Marina?
Sorriu pra ele. Não quis pensar mais. São todos iguais. Só quer me levar pra cama. Depois casa com menina do “meio social” dele. Tá bom!
Chegou em casa, não viu a mãe. Mas estava bagunçado. Era até meio normal, só ela arrumava. Percorreu os cômodos e achou a mãe, deitada no chão, seminua. Tentou acordá-la. Devia ser mais um porre. Mas não. Ela estava morta.
Chamou a vizinha. Sentou-se. Deixou a apatia tomar conta. Deixou tudo por conta dos outros.
Foi levada para o velório. Não soube quem levou. Não soube quem vestiu a mãe, quem providenciou tudo, quem pagou. Estava “fora do ar”.
Foi levada para perto do caixão. Ainda não sabia do que a mãe tinha morrido. “Não deixou nem um bilhete, porra!...” Lembrou-se da brincadeira que tinha com a mãe. Lembrou-se que a mãe estava no chão de calçinha e soutien. Soutien.
Meteu a mão dentro do soutien da mãe. Peito esquerdo. Lado do coração. Encontrou um bilhete. Mal escrito, mas era pra ela. Ficou com medo de ler. Apertou o bilhete na mão. Olhou para o lado. Perguntou de que a mãe tinha morrido. Do coração? Mas como? De súbito? Nem sempre. A pessoa pode se sentir enjoada primeiro, pode levar um tempo. “Tempo pra achar um pedaço de papel e um lápis, no meio daquela bagunça...” Saiu dalí procurando um canto pra ficar só. Leu o bilhete. “Arrisque-se, Marina!” O ponto de exclamação era um fio cheio de curvas que acabava quase no final do papel mas tinha um ponto no final, pra mostrar bem que era um ponto de exclamação.
Conseguiu chorar.
Um mês se passou. Estava no trabalho. Trabalho distrai a cabeça. Tinha voltado no dia seguinte à morte da mãe. Tirou o bilhete do lado esquerdo do soutien, discretamente, no meio da loja. Não tinha ninguém.
A porta da galeria se abriu. O sininho tocou. Era ele. O Marcos. Já sabia o nome do cara.
Ele disse “meus pêsames”. Depois sorriu.
- Vamos almoçar?
Ela topou.

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